03 - Universalis, 1988
- jeffpavanin

- há 14 horas
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O dia seguinte não foi muito diferente do primeiro. Passei boa parte da manhã com Glauco e os demais estudantes na Clareira, ouvindo Ceci e outro garoto tocarem músicas com harpa e flauta. O momento foi oportuno para que eu conhecesse melhor aquelas pessoas, que até então não tinham conversado muito comigo. Descobri que Ceci cursava Música, que o garoto que tocava flauta se chamava Roger e era seu namorado. A outra garota, de cabelos longos e negros, era Amanda e cursava História da Arte. Os outros três garotos se chamavam Leo, Felix e Gustav, eram da Economia. Todos estavam no segundo ano. Não perguntei como tinham se conhecido, pois imaginei que certos cursos não compartilhavam disciplinas, mas eles formavam um grupo que costumava se encontrar com frequência. Glauco fazia brincadeiras com todos e se divertia com as piadas que os outros contavam. Ele cursava Psicologia. Era o mesmo curso que eu iria iniciar no dia seguinte e ele se mostrou animado em saber disso.
"Vamos nos encontrar bastante, então", ele me disse, sorrindo. Eu só assenti.
Mais tarde, descobri que o almoço era servido em um salão de um prédio externo. Quando saí do principal para encontrar o local, ainda fazia frio e o dia parecia mais carregado. O vento cortante avermelhava nossas peles conforme andávamos até o refeitório. As folhagens farfalhavam e a atmosfera estava bem agradável. Desejei voltar ali depois do almoço, mas continuei andando. A arquitetura daquele outro prédio seguia o padrão externo da universidade, mas notei que esse tinha um aspecto mais novo. Quando andei pelos corredores no dia anterior, me questionei se cada ala da Universidades Helicon possuía um estilo arquitetônico diferente, pois os dormitórios pareciam bem distintos da área comum. Quando entrei no prédio do refeitório, notei outra diferença. Alí, as paredes eram todas brancas e as colunas seguiam um estilo quase greco-romano, mas moderno. Eu não sabia exatamente o motivo de me importar com esse tipo de detalhe e também entendia quase nada de Arquitetura, mas era algo que definitivamente me chamou atenção.
O almoço foi bastante satisfatório. Serviram um banquete, mesmo que para poucas pessoas. Comemos diversos tipos de carnes com molhos de laranja e pêssego, saladas coloridas, ovos assados com especiarias, castanhas e outros grãos. Bolos e tortas doces foram servidos na sobremesa, além de pudim e sorvete de passas. Conforme eu comia, percebi que alguns funcionários também se reuniam ali para fazer suas refeições e não pude deixar de notar que estavam em maior número naquele dia. Subitamente, lembrei da carta de meu avô, que mencionava um nome que eu ainda não conhecia. Será que o professor Hector estaria entre eles? Meu avô tinha dito na carta que ele era o único com quem eu poderia contar e confiar. Eu ainda não sabia se ele era um professor de fato, mas imaginava que pudesse ser alguém próximo ao meu avô. Conversando com Glauco, tentei sondar a respeito:
"Aqui tem algum professor do nosso curso?", perguntei, tentando soar descontraído.
Glauco olhou ao redor do refeitório. Não pareceu notar ninguém em particular.
"Acho que não", respondeu ele, voltando-se para mim. "Nem todos os professores de Psicologia são exclusivos do curso. Algumas disciplinas são compartilhadas. Por exemplo, a professora de História da Psicologia dá aula para nós e para as turmas de Enfermagem e Medicina. No segundo ano, nós vamos ter Ética com o professor que também leciona no curso de Jornalismo. É meio doido."
Mais uma vez, apenas assenti. Eu conheceria Hector em outro dia. Quando terminamos de almoçar, o grupo se separou e eu voltei sozinho para o dormitório. Cada quarto tinha uma espécie de caixa de correios atrás da porta para quem recebesse cartas ou outros documentos e quando entrei, encontrei ali dois envelopes grandes. Em uma etiqueta estava escrito o nome Sebastian e no outro o meu nome. Imaginei que Sebastian, então, seria meu colega de quarto, que chegaria entre hoje e amanhã. Peguei o meu envelope e deixei o dele ali. Dentro estavam instruções sobre o ano letivo, a ementa do curso, minha grade de horários e uma revista sobre a universidade, com imagens do campus e textos informativos. Dei uma olhada nos horários, minha primeira aula seria Introdução à Psicologia, com a professora Letitia Belvedere. O fato de os nomes dos professores estarem todos listados ao lado das disciplinas me chamou atenção. Senti um fio de esperança tomar conta de mim e rapidamente procurei o nome de Hector, para tirar de vez a dúvida se ele era mesmo um professor.
Não encontrei nada. A dúvida persistia.
Frustrado, coloquei tudo dentro da minha mochila e a deixei de lado. Ainda era estranho pensar que as últimas palavras de meu avô para mim estavam gravadas em um pedaço de papel dobrado e eram extremamente enigmáticas. Talvez eu devesse perguntar sobre isso à Agnes, mas a carta era explícita em afirmar que eu não deveria confiar em ninguém além de Hector. Se quisesse saber mais sobre a carta, deveria buscar por ele. Eu só não sabia por onde começar. O que me tranquilizou foi pensar que aqueles ainda eram os meus primeiros dias naquela nova realidade. Muitas pessoas ainda seriam apresentadas a mim, eu ainda aprenderia muito. Certo? Por enquanto, parecia certo.
Minha última esperança era os diários. O importante conhecimento que Ernesto Conti reuniu durante sua vida. Era o que a carta dizia. Retirei a mala do guarda-roupa e peguei os três diários e a carta, ainda amarrados naquele cordão. Reli o que ela dizia, mas não encontrei nenhuma outra pista sobre o que ela poderia significar. Então, fui logo para o primeiro diário, aquele que continha o número 1 escrito no canto superior direito da página de rosto. Comecei a folhear… e encontrei um monte de rabiscos. As primeiras páginas estavam cheias de uma grande coleção de riscos feitos em tinta preta. Eram literalmente inúmeros traços desajeitados, como se feitos por uma criança, que tomavam as folhas por completo, apagando o que estaria escrito originalmente. Algumas páginas ainda estavam sujas por manchas enormes de tinta nanquim, como se alguém tivesse derramado propositalmente um frasco inteiro, deixando o papel até enrugado. Outras páginas tinham até furos e ranhuras, como se a ponta de uma caneta tinteiro, ou uma faca, as tivesse arranhado.
Após o choque inicial, senti uma frustração inquietante. O que quer que estivesse escrito ali, estava completamente perdido agora. Todo aquele conhecimento hipotético que eu deveria guardar com unhas e dentes já não existia mais. Abri os outros dois diários e ambos se encontravam da mesma forma, repletos de rabiscos e rasuras. A primeira impressão que tive foi de que alguém tinha feito isso de propósito. Não fazia sentido meu avô ter censurado os escritos, pois ele provavelmente gostaria que eu lesse tudo, conforme a carta dizia. Certo? Contudo, esses diários estavam guardados há treze anos. Quem quer que tenha vandalizado aquelas páginas, deveria ter feito há muitos anos. Em uma segunda análise, a tinta parecia mesmo seca há tempos. Os volumes estavam empoeirados dentro daquela caixa. Cheiravam a coisa antiga.
Nada fazia sentido. A carta, os diários, o tal do conhecimento secreto. O que tudo aquilo significava? As únicas pessoas que poderiam tirar essa dúvida eram Ernesto Conti e Hector. Um estava morto e o outro era ainda um completo desconhecido. Os diários eram inúteis, assim como o resto do gabinete, que estava com todos os armários trancados e sem chaves. Enquanto eu pensava nesses enigmas, uma inquietação foi tomando conta de mim. Eu precisava saber de alguma coisa. Qualquer coisa. Eu queria encontrar um pouquinho de sentido que fosse. Assim, voltei ao gabinete. Cheio de segredos, meu avô certamente mantinha mais deles ali e eu estava disposto a procurar. À primeira vista, o gabinete me pareceu um escritório comum. Contudo, após eu ter encontrado os diários e a carta, e com aquelas dúvidas martelando minha mente, a sala agora me transmitia uma atmosfera de puro mistério. A carta dizia que eu poderia fazer bom uso do que houvesse lá, mas fazer bom uso de que? Comecei a procurar.
As duas gavetas da escrivaninha de meu avô, no cômodo principal, estavam destrancadas. A primeira, continha uma pasta cheia de papéis e anotações sobre aulas, assim como o resto dos diários na caixa. Não pareciam importar tanto. Neles não consegui encontrar nada além de conteúdo acadêmico convencional, mas foi assim que finalmente percebi que meu avô lecionava filosofia e história quando era vivo. Sempre achei que pudesse dar aulas de música ou algo relacionado às artes, devido seu fascínio por instrumentos. Pensando bem, filosofia era mesmo a cara dele. Lembrei vagamente das noites que passávamos frente à lareira na mansão, quando ele devaneava em voz alta sobre coisas que na época eu não entendia. Parado agora neste gabinete, pensei que talvez eu devesse ter prestado mais atenção no que ele dizia. Coloquei a pasta de volta e fui para a segunda gaveta. Mais papéis, dessa vez dispostos em outra pasta, preta como o couro dos diários. Era a única coisa na gaveta. Seu conteúdo estava organizado em sessões, separados por abas com etiquetas. Li em voz alta algumas delas:
"Ofícios. Estudos. Locais. Rumores", li em voz alta algumas delas. As duas últimas me chamaram atenção, estavam nomeadas Universalis e Fotografias.
Eu não tinha acesso a nenhum álbum de fotos de meu avô ou de minha família, minha avó havia guardado todos após o velório e não permitia que ninguém olhasse. As memórias que tínhamos dele e de meus pais eram apenas isso, memórias. Sentei na cadeira giratória da escrivaninha e abri aquela parte da pasta. Tirei de lá um maço com uma série de imagens e as analisei uma a uma em cima da mesa. Eram coloridas e a maioria representava um objeto ou uma paisagem. A última delas retratava um grupo de pessoas. Eles estavam diante de um grande prédio, cuja fachada reconheci de imediato: era a da Hélicon — eu havia passado por lá pela primeira vez no dia anterior. Estavam todos meio amontoados nos degraus da escadaria, em duas fileiras. Contei quinze pessoas, treze adultos e dois adolescentes. Os adolescentes eram uma menina que estava de pé ao lado de um homem moreno, e um garoto loiro, ao lado de uma mulher também loira. Reconheci meu avô em um dos cantos, na fileira da frente, exatamente como eu me lembrava dele: terno escuro, cabelos grisalhos, óculos de aro redondo. A barba apontando para baixo, como uma seta. Não reconheci mais nenhum rosto. No verso da fotografia, encontrei algo escrito:
Universalis, 1988
A legenda me levou à aba de mesmo nome, na pasta. Dentro encontrei um único documento, também datado de 1988, seguido de uma lista de nomes:
Alejandro Ramirez
Carlos Lombardi
Douglas Adams
Ernesto Conti
Hector Moretti
Histalamar
Kaito Kobayashi
Maria de Fátima
Marta Rinaldi
Masuyo Kobayashi
Neusa Rizzo
Richard Zardini
Rudra Varma
É claro que um daqueles nomes despertou um alerta na minha mente: Hector Moretti. Um dos homens na imagem, junto de meu avô, era o Hector mencionado em sua carta. A única pessoa em quem eu poderia confiar. Àquela altura, tendo levado tantas dúvidas pra cama no dia anterior, eu já estava farto de tentar entender a suposta hostilidade que poderia me atingir a qualquer momento. E eu não deveria confiar em ninguém, a não ser naquele completo desconhecido. Apesar disso, aquela pasta era alguma coisa. Era o mais próximo que eu tinha chegado até agora de qualquer resposta. Assim, voltei as fotos e a lista para dentro dela e a levei comigo ao dormitório.
Eu tinha perdido a noção do tempo que passei dentro do gabinete e através das janelas vi a noite chegar. O dia seguinte reservava o início das aulas na Hélicon e aqueles corredores logo estariam abarrotados de estudantes. Eu queria evitar entrar no gabinete novamente durante esses primeiros dias. Se alguém me visse, significaria entregar meu sobrenome. Eu não podia contar com a discrição de Glauco e seus amigos, afinal ainda não os conhecia o suficiente e eles poderiam espalhar boatos. Não que eu realmente me importasse com o parentesco, era uma honra pra mim ser da família de Ernesto Conti. Eu o admirava. Contudo, não queria que soubessem do testamento, da herança. Da fortuna. Certamente isso geraria conversa. Queria que me conhecessem pelo que sou e não pelo que tenho. Por agora, resolvi não pensar nisso. Outras coisas tomavam conta do meu imaginário, como aquele grupo de pessoas na foto com meu avô. Universalis. Eu voltaria a analisar aquelas fotos de objetos e paisagens em um outro momento. Aquelas imagens seriam meu passatempo pelos próximos dias, até que eu me encontrasse com Hector Moretti.
Coloquei a pasta junto dos diários rasurados e fui pra cama. Fechei os olhos tentando afastar o que ainda insistia em girar dentro da minha cabeça. A escuridão me envolveu e eu deixei que ela me levasse. Por um instante, não havia mais Hélicon, nem passado, nem herança — só havia silêncio.

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