01 - O velho e o novo
- jeffpavanin

- há 20 horas
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Quando eu era pequeno, quase não convivia com outros meninos da minha idade. Basicamente, o único contato que eu tinha com crianças se dava quando a governanta de minha família trazia seus próprios filhos para a mansão. Eles viviam em um vilarejo próximo à propriedade e, no período de férias escolares, minha avó deixava que viessem brincar nos campos. Eles corriam pela paisagem alaranjada do outono, abarrotada de folhas caídas, que rodeava o velho poço, abraçavam as árvores secas e por vezes se enfiavam nos cômodos mais sombrios do velho casarão. Nem sempre eu sentia vontade de fazer essas coisas com aqueles garotos, eram ainda mais velhos do que eu, mas viviam a infantilidade característica dos mais novos. Eu gostava mesmo de quando eles se interessavam pela biblioteca. Era nesse momento que eu conseguia me conectar de alguma forma com aquelas crianças, apresentando os livros que eu mais gostava e os cantos que eu preferia me sentar para ler. Os meninos se fascinavam com tantos livros, mas logo perdiam o interesse e voltavam a correr.
Algum tempo mais tarde, após a morte do meu avô, vovó entrou em uma depressão profunda. Não saía do quarto escuro e vivia recebendo a visita de médicos do vilarejo. As crianças não mais apareceram, a governanta achava que faziam bagunça demais e a última coisa que ela queria era aborrecer a patroa. Assim, eu passei minha adolescência toda sem contato com outros jovens. Eu adoraria voltar a frequentar a escola e o vilarejo, mas minha família era muito austera em relação a essas coisas. Havia a questão do testamento. Ninguém falava sobre o assunto, mas para mim era sempre uma questão. Desde o fatídico dia no qual nossa família recebeu a notícia sobre a herança de Ernesto Conti, nossa vida mudou da água para o vinho, principalmente a minha. Aos sete anos, saí da escola e passei a receber minha educação em casa. Três professores me visitavam semanalmente: um me ensinava sobre o mundo, suas leis e culturas, o outro sobre números e equações - apesar de o professor ser uma boa pessoa, eu particularmente odiava a matéria - e a terceira vinha para me ensinar as artes. Com ela, aprendi sobre desenho e pintura, sobre escrita e, o que eu mais gostava, a tocar instrumentos musicais. Além dos livros, eu também era fascinado pelos instrumentos do meu avô. Sabia que vinham de diversas partes do mundo e me encantava pelas cordas, pelas cores e pelos entalhes dos instrumentos de percussão. A professora me ensinava a tocar as mais difíceis melodias no violino e eu acabei me aperfeiçoando neste instrumento. Até hoje, quando penso naquela época, me lembro da serena fisionomia que a professora mantinha quando passava o arco pelas cordas do violino.
Hoje, treze anos depois, eu ainda colho os frutos da infância marcada por aquele testamento. Nas curtas linhas deixadas pelo meu avô no papel amarelado, estavam listadas as regras que minha família deveria seguir em relação à minha vida e minha educação, sob o ônus de perdermos toda a fortuna. Uma dessas linhas dizia que eu poderia ingressar, se fosse da minha vontade, em um curso de minha escolha na Universidade Hélicon, na qual vovô fora professor por muitos anos. O curso já estava pago, caberia a mim decidir o que cursar assim que tivesse a idade mínima. Na época, eu não soube muito bem o que pensar sobre isso, era criança e nada sabia sobre a vida acadêmica. Contudo, com o passar dos anos, fui me afeiçoando à ideia de sair daquela casa. Após o longo período em educação domiciliar, seria bom finalmente retornar ao convívio social. E é assim que me encontro agora, pensando na minha recém-adquirida liberdade, uniformizado dentro de uma limusine, a caminho da Universidade Hélicon. A paisagem lá fora é a que eu esperava encontrar: uma densa fileira interminável de pinheiros ladeando a longa estrada de cascalhos que leva à universidade. Eu já tinha visto fotos no escritório de vovô e, de alguma forma, a cena me parecia familiar. Apesar disso, eu sentia que já havia passado uma eternidade dentro daquele carro, sozinho, mas eram apenas quatro horas de viagem até o campus. Por conta disso, eu soube que estava ansioso.
Eu achava que a mansão onde eu morava era grande, com uma amplitude de quartos e cômodos dedicados às mais variadas atividades, mas não estava preparado para o que eu vi quando o carro finalmente parou na alameda da universidade. À minha frente estava a Universidade Hélicon: um complexo de edifícios de diversos tamanhos que formavam um grande quadrado em volta de um enorme jardim. Todo o complexo era arborizado e, além dos já vistos pinheiros, os prédios se perdiam entre uma diversidade de árvores cujas abóbadas agora se moviam conforme o vento soprava. Quando saí do carro, precisei até subir a gola do suéter que usava por baixo do paletó do uniforme para me proteger do frio cortante. Enfim, eu estava ali, no ambiente sobre o qual meu avô tanto comentou e onde passou a maior parte de seus dias enquanto viveu. Agradeci ao funcionário que retirou minhas malas do carro e acenei para o motorista de minha família, os últimos vestígios dos Conti que eu veria em minha vida pelos próximos anos. A partir daquele ponto, eu estava sozinho.
Àquela hora, o campus da universidade me pareceu estranhamente vazio. Imaginei que veria vários grupos de jovens circulando por todo lado, mas a ausência de pessoas me causou um estranhamento que eu não imaginava sentir, já que aquele contexto deveria significar o oposto da solidão que vivenciei havia anos. De qualquer forma, quando o carro contornou a alameda e sumiu pela estrada de cascalhos, peguei as malas e fui até a entrada do prédio central. Parecia um grande castelo antigo e, conforme eu chegava mais perto da larga escadaria que me levaria às portas principais, percebi que a construção estava muito bem preservada. Eu não soube identificar o estilo arquitetônico das colunas e detalhes que ladeavam as grandes janelas e a porta de carvalho. Atrás de mim, a paisagem bucólica, o vento frio e o dia escuro fizeram com que eu me sentisse imediatamente bem. Eu estava livre.
Horas depois, eu já havia me estabelecido no dormitório que seria meu lar pelos próximos anos. Uma mulher havia me ajudado a localizar o quarto, que era grande e mobiliado com duas camas. Eu não soube dizer naquele momento se dividiria o dormitório com outro estudante, mas caso fosse essa a questão, o faria de bom grado. As paredes do cômodo eram revestidas de placas de uma madeira bem escura e lisa que iam do chão ao teto e levavam muitos quadros. A porta também era feita de madeira e era rica em detalhes de metal dourado, assim como a grande janela que dava para o campo lá fora. Observando através do vidro, ajoelhado na saliência almofadada da janela, percebi que a vista lá de fora era bem agradável. Entre o verde e o alaranjado das folhas das grandes árvores, consegui identificar um pequeno coreto que ficava ao lado de outro prédio da universidade. Àquela hora, o coreto também estava vazio. Era branco e ornamentado com flores coloridas. Pensei que talvez eu pudesse visitá-lo antes do fim do dia.
Estava prestes a me levantar quando um garoto apareceu através da porta entreaberta. Ele era loiro e usava o mesmo uniforme que eu, mas levava um broche dourado na lapela. Não pude deixar de perceber que uma mecha de seus cabelos caía por entre seus olhos claros, em uma franja curvada muito bem cuidada. Antes que eu pudesse reagir em surpresa, o garoto disse:
"Falaram que um primeiranista havia chegado, mas eu não acreditei. Todos vocês se atrasam, eu tive que ver com meus próprios olhos."
De início, eu não soube o que responder, apenas assenti. Aquele era o primeiro estudante da Universidade Hélicon que eu via em carne e osso e o primeiro a quem me dirigi. Uma estranha emoção tomou conta de mim frente àquela interação social. Estava conversando com outro ser humano da minha idade. E ele sorria. Enfim, me levantei da saliência da janela e estendi a mão para o garoto, que retribuiu o aperto e continuou:
"Você é o primeiro a aparecer. As aulas só começam daqui a dois dias."
Aquilo me pegou de surpresa. Achava que a carta especificava bem a data de início das aulas, marcada para o dia seguinte, de acordo com o que eu me lembrava.
"Eu achei que era amanhã. A carta dizia-"
"Carta? Alguém te enganou, meu amigo. Meu nome é Glauco. Você é…?"
Anton Conti. Senti que eu não poderia entregar meu sobrenome de uma vez. Será que as pessoas reconheceriam e consequentemente saberiam de quem eu era neto? Passaram-se treze anos desde o seu falecimento, mas a universidade era parte essencial da vida de meu avô. Eu jamais esqueceria dos longos períodos que meu avô passava longe de casa, estudando e lecionando. Viveu aqui por mais de 40 anos, o sobrenome deveria ser conhecido. Senti que assim que eu falasse, eles também saberiam que aquele primeiranista era o único herdeiro do Professor Ernesto Conti. Será que sabiam sobre o testamento? Preferia evitar.
"Anton."
"Certo. Todos estão na Clareira. Ceci vai tocar a cítara. Você está à toa?" Glauco olhou ao redor, analisando o quarto com aqueles olhos de gude. Minhas malas estavam abertas e vazias em cima da cama, o armário abarrotado de roupas e sapatos. "Vejo que já desfez as malas. Se quiser, pode se juntar a nós. Vai ser legal."
Mais uma vez, eu apenas assenti. Eu segui Glauco pelos corredores da universidade, saindo dos dormitórios e entrando na área comum. Desde que entrei no prédio principal, percebi que o estilo de arquitetura das instalações mudava conforme eu caminhava. Os dormitórios seguiam um estilo clássico que eu já vira em mansões do interior do país e lembrava muito minha própria casa, com as paredes lisas e o teto arcado revestidos de painéis de madeira escura - talvez mogno - e chão de mármore, com a diferença de que na universidade os detalhes eram sempre dourados. Já na área comum, que dava para as salas de aula e tomava a maior parte do prédio principal, era tudo feito de pedra branca. Eu pensei que fosse mármore, mas não era conhecedor de rochas calcárias. Não era conhecedor de rochas alguma. Ali, os detalhes também eram dourados, assim como os veios do mármore que revestia o chão. Tapeçarias, quadros e estátuas estavam por todos os lados. De alguma forma, tudo me pareceu um pouco desconexo. Aliás, tudo na Universidade Hélicon até agora parecia seguir um estilo eclético.
Pisando na área em que o chão se tornava branco, continuei seguindo os passos de Glauco, notando que o garoto era um tanto mais alto que eu. Em que ano será que ele estava? O que cursava? Enquanto pensava nisso, percebi também que Glauco quase desfilava pelos corredores, pleno. Ele pertencia àquele lugar, conhecia seus caminhos, sabia como se portar. Eu, de ombros baixos, inconscientemente endireitei a coluna tentando emular a postura do meu recém-adquirido colega. Nós chegamos a uma área na qual o largo corredor se cruzava com outro que se abria para um espaço amplo no centro do prédio. A Clareira era como se chamava esse pátio interno. Era enorme e, estranhamente, arborizado, com um gramado bem cuidado. Consegui ver o céu lá em cima por entre as torres da universidade. O dia ainda estava carregado de nuvens. Do outro lado do pátio, arcos denunciavam outros arredores que dariam para outras áreas da universidade que eu ainda não conhecia.
Ali, sentados embaixo de uma árvore, havia cinco jovens. Glauco acenou para todos e, com a outra mão, apontou gentilmente para mim, como um cavalheiro.
"Apresento a vocês esse espécime raríssimo. É o primeiranista que chegou mais cedo."
Todos olharam para mim, alguns sorriram quando ele acenou. Havia duas garotas. Uma delas, de cabelos curtos, tinha um instrumento que eu reconheci imediatamente. A cítara era angulosa, tinha quase o formato de um trapézio e era feita de um material escuro e decorado com entalhes florais. Não consegui identificar o número de cordas do instrumento, mas recordava que meu avô tinha um muito parecido. A garota o segurava com delicadeza. Quando Glauco se sentou no chão, decidi fazer o mesmo. Ninguém falava, todos pareciam esperar por Ceci, que acomodou a cítara em uma almofada à sua frente, de forma que fosse confortável tocá-la. Ceci então posicionou os dedos acima do instrumento - tinha na ponta de um dedo indicador uma palheta e segurava uma triangular na outra mão. Antes de começar, ela disse:
"The Sound of Silence".
Tocar cítara parecia algo muito complexo. O instrumento tinha muitas cordas, mas Ceci sabia exatamente quais tocar. O som era agudo e tinha as características de sons de um instrumento de cordas, mas ainda assim era único. Eu reconheci a música, já a ouvira algumas vezes na vitrola de meu avô. Enquanto ouvia Ceci tocar, ali debaixo daquela árvore, junto de alunos da universidade que agora eu iria frequentar, me senti de certa forma pertencente. Jamais imaginaria que o local ofereceria tão confortável familiaridade. Eu estava me lembrando muito de meu avô. Mesmo imaginando que a universidade causaria esse efeito, eu esperava que tudo fosse alheio ao já vivenciado, afinal, aquela era uma parte da existência dele - e da minha - que eu ainda não conhecia. Fechando meus olhos, tentei me concentrar apenas nos sons que eu ouvia e percebi que, pela primeira vez em muitos anos, eu estava em paz. Era como se não houvesse preocupações. Não existiam mais as cobranças de minha avó, a angústia da solidão, o silêncio do quarto escuro. Só existia luz, som e consciência. Eu sentia que estava flutuando, não sentia frio ou calor, não sentia as roupas tocando o meu corpo ou a fragilidade da minha existência.
Só quando a música chegou ao fim, com os delicados dedilhados de Ceci, eu me lembrei onde estava. Todas as sensações dos meus cinco sentidos voltaram de repente. O vento frio da Clareira, o som dos pássaros, a respiração de meus colegas. Abri os olhos. Percebi que eu, assim como os outros, tinha me deixado no gramado. Fiquei surpreso, um tanto assustado. Não tinha memória de ter me deixado. Os outros sorriam e trocavam olhares divertidos, como se estivessem acostumados com aquela sensação.
"É como transcender", alguém falou.
Glauco me olhava. Ele sorria com os olhos, era como se aquela ternura me dissesse que estava tudo bem. Sorria de volta. Eu tinha sido bem recebido naquele lugar.
A mulher de antes, aquela que havia me ajudado a encontrar o dormitório, apareceu através dos arcos de um dos corredores. Ela segurava algo entre as mãos cruzadas na frente de seu corpo. Não pareceu se importar que os alunos estivessem deitados no gramado da Clareira. Então, ela acenou para mim.
"Sr. Conti, você tem um minuto?"
O sobrenome. Por um momento, eu olhei para os outros, estavam todos me observando. Eles sabiam quem eu era. Eu não imaginava toda a extensão do que aquilo poderia significar, mas para aquelas pessoas, que haviam me recebido tão bem, eu já não era um primeiranista qualquer. Não era um anônimo. Carregava o fardo de ser o único herdeiro de Ernesto Conti, o bilionário professor da Universidade Hélicon. Eu vivia à sombra desse título desde minha infância, era como se eu não fosse ninguém além daquilo.
Levantei-me e bati as mãos nas calças, afastando algumas folhas.
"Claro", respondi e segui a mulher pelos corredores.

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