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Prólogo

  • Foto do escritor: jeffpavanin
    jeffpavanin
  • há 2 dias
  • 5 min de leitura

I

A carta


Em um fim de tarde nublado e de céu escuro, uma mulher fuma debruçada na janela de seu apartamento enquanto observa a rua lá embaixo. A visão que tem é de uma ruela molhada, silenciosa e pouco iluminada, que estaria completamente vazia àquela hora se não fosse por um homem que por ali passa. O sujeito vem vestido em uma roupagem preta - chapéu da mesma cor -, sobretudo tão longo que a barra se arrasta nas poças de chuva. Despreocupada, a mulher apaga o cigarro na madeira carcomida do batente e voltaria para dentro do apartamento se o homem não tivesse se dirigido à porta do complexo onde ela mora. Conforme o homem se move, ela percebe que um gato vem logo atrás, seguindo-o. O homem leva a mão até o peito do paletó e tira de lá uma carta, que insere no vão da porta destinado às correspondências. Antes que a mulher pudesse sequer pensar sobre o que vê, o homem levanta o olhar diretamente para ela e leva o dedo indicador enluvado até a frente dos próprios lábios, como se pedisse silêncio. A mulher nada entende. Com um calafrio, volta o corpo para dentro do apartamento, fechando a janela rapidamente.


II

O artefato


Um grande refletor lança raios de luz aos céus quando dois indivíduos discretamente  atravessam o pátio comercial. As poucas lojas existentes no pátio, que se situa atrás de outros prédios, se encontram fechadas. O local estaria vazio àquela hora se não fosse pela presença de um veículo, uma van, que se esconde entre as sombras, onde as luzes do refletor e da rua não podem alcançá-lo. Antes de penetrar na área do pátio dominada pela semiescuridão, a dupla passa pela entrada de uma das pequenas ruelas daquele local. A luminosidade da ruela revela a natureza dos indivíduos: uma mulher e um homem, ambos jovens e vestidos de preto, empunhando uma arma cada um. De ouvidos e olhos atentos, a dupla abre a porta traseira do veículo e entra sem causar ruído.


Lá dentro, ambos tentam se livrar da pressão que tencionava seus músculos e largam as armas em uma bandeja. A mulher então olha para o companheiro e fala em voz baixa:


“Acho que ninguém nos viu.” Seus cabelos negros caem por sobre os ombros quando ela tira o elástico que antes os prendiam em um rabo de cavalo. “Conseguiu pegar?”.


Ela se referia ao item de inestimável valor que dava objetivo àquela missão. Pegar talvez não fosse o termo adequado, uma vez que tiveram de invadir um apartamento para obtê-lo. Havia roubado o objeto. O homem, que também tentava se livrar das roupas escuras, ajeita seus óculos no alto do nariz e estende a mão enluvada, onde pousa um pequeno cubo prateado. Rapidamente, ele o envolve em um veludo e o guarda em uma pequena e também prateada maleta, antes que a mulher possa sequer tocá-lo.


“Vamos torcer para que seja mesmo este”, disse o homem, e pula para o banco do motorista. “Hector disse que poderia haver cópias, mas esse foi o único que vi em todo o apartamento. Sim, eu tenho certeza. Você deveria ter visto a organização daquele lugar.”


A mulher iria lançar uma pergunta, mas resolveu calar-se. Ela pula para o banco do passageiro sem dizer palavra, mas a expressão em seu rosto diz muito mais do que qualquer palavra. Ela ainda está apreensiva. Apoia o queixo na parte superior dos dedos e põe-se a observar a cena através da janela do veículo, que começa a se movimentar. Contudo, seus olhos não enxergam muita coisa, já que seus pensamentos a consomem. O pátio comercial vai ficando para trás na medida em que o homem conduz o carro em direção à movimentação das ruas da cidade. Apesar de já ser tarde, alguns estabelecimentos ainda piscam seus anúncios e muitos carros atravessam as grandes avenidas. É comum ver mulheres se esfregarem em postes de néon enquanto passam por elas, mas nem esse tipo de distração foi notado pelos olhos daquela que ainda se perde em preocupações.


“Patt, e se não for isso?” Um pequeno tremor em sua voz denuncia o medo que sente. “Tem de ser isso. Não consigo imaginar viver sem… Patt, tem de ser isso!”


O homem mal presta atenção. Ele olha para as ruas através dos retrovisores, se atentando a carros ou pessoas suspeitas. Ao menos não estavam sendo seguidos, pensa ele, enquanto a mulher continua a expor seus temores. Até que então ele diz:


“Pelos deuses, Alissa, é realmente isso. Só tinha esse cubo prateado no apartamento todo e, se aquele era o apartamento certo, este também é o cubo certo."


A impaciência de Patt se confronta com a preocupação de Alissa, que volta a fingir que observa a paisagem lá fora. Ela balança a cabeça em negativa durante todo o trajeto do veículo até seu destino, mordendo as falanges da mão toda vez que evoca um pensamento negativo. Ela temia o pior.


III

O testamento


Por vezes, quando o dia amanhece ensolarado, muitos buscam fazer uma caminhada logo que acordam, levando seus corpos a ambientes saudáveis e livres de tristeza. Alguns ainda procuram mais, aproveitam o final de semana para viajar, lotar o carro de malas e partir rumo ao litoral. Sol e céu azul muitas vezes são sinônimos de felicidade, tal como mostram os comerciais na televisão. Contudo, aquele dia ensolarado não amanheceu tão perfeito para certo grupo de pessoas.


É com grande tristeza que a viúva de Ernesto Conti acompanha o caixão de seu marido durante a marcha fúnebre rumo à cova. Ela chora muito e tenta, em vão, enxugar as lágrimas em um lencinho já ensopado, emitindo ruídos lacrimosos, tão comuns àquele evento. Os demais presentes também se lamentam, mas nem todos choram. Pequenos sussurros seguem a marcha enquanto o padre recita versículos sagrados já marcados pelo ofício.


Ao lado da viúva, em silêncio, segue um menino.


O sol está em seu prumo radiante, e o caixão termina seu percurso no âmago do cemitério, onde um memorial foi levantado para a realização do velório. Alguns dos convidados, provavelmente os mais distantes do morto, optaram por permanecer sentados nas cadeiras enquanto aqueles que de alguma forma se preocupavam acompanhavam a passeata até ali.


Quando a fila de pessoas para diante do memorial, a viúva empurra o garoto para a fileira de assentos a fim de poupar-lhe o esforço de permanecer com ela ajoelhada diante do caixão. Ela começa uma reza solitária, com o lenço roçando os lábios enquanto murmura, sem dar atenção aos demais, os mesmos versos que o padre. Uma mulher envolve o garoto em um abraço meio torto quando ele se senta meio cabisbaixo. Ele era muito ligado ao avô, mas, naquela idade, ninguém de fato sabia se conseguia compreender a morte em sua totalidade.


"Seu avô foi para um lugar melhor…", diz a mulher.


O menino, sem olhar diretamente para ela, nada diz.


A mulher dirige um olhar triste ao garoto, sem dizer mais nada também.


Mais tarde, naquele mesmo dia, os membros ainda vivos da família Conti se reúnem na casa do falecido patriarca para oferecer condolências à viúva. A velha está agora sentada no sofá da sala, rodeada de pessoas, e com o lencinho na mão. Ela ainda o leva ao rosto a todo momento. Há uma atmosfera estranha pairando sobre o ambiente e todos ali sabem que nada tem a ver com o luto. O menino apenas observa, notando que lágrima alguma caía dos olhos de ninguém. Essa atmosfera havia se estabelecido após a chegada de um estranho homem. Ele usa chapéu e um longo sobretudo.


"Então ele deixou um testamento?", pergunta alguém.


O homem apenas assente. Depois de alguns segundos, estende um envelope pardo à velha, que treme, sem saber como abri-lo. O filho mais velho do morto, então, arranca o envelope da mão da mãe e rasga a lingueta, retirando de dentro uma folha branca dobrada. Nela, além dos símbolos que ditam que aquele é um documento oficial e válido, há apenas algumas linhas datilografadas. A mais importante delas diz:


"Deixo tudo que tenho ao meu querido neto Anton."


O menino apenas suspira enquanto todos os olhares recaem sobre ele.


Em seguida, tudo muda.


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