03 - Prisioneiro
- jeffpavanin

- 23 de jul. de 2023
- 10 min de leitura
Havia um casebre em chamas. Sempre havia. Também sempre havia um menino. Clarões vermelhos tomavam conta da visão do menino enquanto ele tentava se enfiar por debaixo dos escombros de madeira e pedra, na tentativa de sair daquele lugar. Estava muito quente, tão quente que por um momento desejou estar coberto de neve e não de fuligem. Empurrou com força um pesado móvel para o lado e conseguiu abrir passagem para o meio do cômodo, que percebeu ser a cozinha de sua casa. Em chamas. Panelas estavam espalhadas, os vasos de barro de sua mãe destruídos, as ervas e grãos tomavam conta do chão.
"Mãe!", gritou o menino a todos os pulmões. "Pai!".
Ninguém respondeu.
As chamas engoliam as paredes, a madeira estalava. O menino não tinha para onde ir. O teto havia desmoronado e acima de sua cabeça o céu estrelado parecia muito distante, bem longe entre as labaredas. Assustou-se quando foi puxado para cima por duas mãos firmes e antes que pudesse pensar em gritar, perdeu o fôlego.
Tudo escureceu.
Via agora, bem distante no horizonte, montanhas. Tudo era tão estranho naquela paisagem. Sentia que algo o chamava em direção a elas e quanto mais as observava, mais próximo delas ele ficava. Era como se caminhasse através do ar, transposto pelo vento que lhe soprava os cabelos. Bem acima, no pico mais alto, uma luz brilhava. Quando estava quase a alcançá-la, a mesma força que o chamava para lá o puxou para baixo, em queda livre, em direção ao mar sem fim. Era como morrer.
*
Johan acordou em um pulo, assustado. Imediatamente outras duas sensações lhe preencheram o peito: primeiro o alívio, estava vivo e bem, e segundo o pavor, estava em um lugar que não conhecia. Tentou lembrar-se dos últimos acontecimentos, mas em sua memória estavam ainda gravadas as imagens daqueles sonhos que lhe perseguiam desde a infância. Não sabia dizer porque se assustava com o incêndio que lhe roubara os pais, já fazia tanto tempo. Talvez fosse o trauma. Já não se lembrava de seus rostos. Ainda assim, sabia que aquela não seria a última vez que sonharia com aquele dia. Tentou colocar os pensamentos no lugar. Aliás, que lugar era aquele?
Estava deitado em uma cama enorme. Lençois brancos lhe cobriam as pernas e ele podia sentir um aroma doce no ar. O cômodo era luxuosamente mobiliado, a cama em seu centro, armários e janelas preenchiam as paredes. Não conseguia avistar paisagem alguma através dos parapeitos, lá fora tudo era céu. Percebeu com estranheza, e tardiamente, que não estava completamente vestido, só uma faixa de tecido escuro lhe envolvia parte do tronco, mas não sentia dor. Havia se acidentado? Se aquele local fosse uma casa de cura, não deveria ter curandeiros transitando? Talvez outros doentes? Sentia-se bem e descansado, parecia ter dormido por toda uma eternidade, mas não conseguia lembrar de ter se deitado.
Ao lado da cama estava montada uma mesa com diversos alimentos. Johan notou que o aroma adocicado vinha de uma bebida que provavelmente havia sido preparada há pouco, pois ainda estava quente. Foi quando percebeu que tinha fome, também não se lembrava da última vez que havia se alimentado. Pensou em pegar uma fruta entre as várias que preenchiam uma cesta colorida, mas seu juízo o impediu, não poderia aceitar nada que viesse daquele lugar enquanto não soubesse o que estava fazendo ali e como havia chegado àquela cama, todo enfaixado. Quando estava prestes a se levantar e espreitar por uma das janelas, uma pessoa entrou apressada no cômodo.
"Ah, você finalmente acordou", ela disse. A mulher vestia uma túnica branca acinturada por uma larga faixa dourada que, diferente da simplicidade do tecido, era ricamente adornada. "Precisa comer alguma coisa."
Johan estranhou seu sotaque, não era ghäleno, mas também não entregava pista alguma sobre onde estava — não serviu de nada para lhe ajudar a se localizar na geografia de Daeva. Estava perdido.
"Onde estou e quem é você?", ele lançou. A mulher franziu o cenho.
"Oras, não se lembra? Meu nome é Lisa, sou a Administradora de Alto Castelo. Por acaso enlouqueceu? Ajudei a te carregar até aqui ontem, você me xingou de trinta nomes diferentes. Seus ferimentos foram curados graças à ajuda de Vossa Grandeza Allana.
Ele não poderia acreditar. Estava mesmo em Alto Castelo? Esse era o nome dado à porção flutuante de Catharsis, que ficava pairando no ar no centro exato de toda a circunferência da cidade, quando não estava em seu trajeto diário até o chão. Também era onde residia a Tríplice, o coletivo de três alados que eram responsáveis por governar a cidade e também todo o continente de Ghäle. Eram conhecidos em todos os cantos por serem os únicos imortais existentes em Daeva. Então estava finalmente de volta à sua terra natal, depois de anos longe. Como havia chegado até Catharsis e o que estava fazendo ali ainda era um mistério.
"Como eu vim parar aqui?"
"Você não se lembra mesmo? De nada? A queda deve ter sido dolorosa, bateu a cabeça." A mulher chamada Lisa puxou uma cadeira e sentou-se à certa distância da enorme cama, ajeitando a parte de baixo da túnica branca. Antes de falar qualquer outra coisa, olhou para Johan e soltou um longo suspiro. "Você apareceu do nada nos portões de Alto Castelo quando estávamos na cidade baixa. Eu não vi, mas algumas pessoas viram e o boato correu por toda a cidade em poucos minutos. Falam que num momento você não estava ali, no outro estava, como se surgisse a partir do nada."
Johan ouviu com atenção, mas não se surpreendeu. A desmaterialização e, por consequência, a materialização, eram habilidades que Hansen havia tentado lhe ensinar desde criança. Como ele era capaz de realizar aqueles feitos não sabia, mas Hansen dizia que com prática e paciência qualquer pessoa, humana ou alada, seria capaz de aprender. Contudo, não era algo que ensinavam em livros nos institutos. Até onde sabia, Hansen era o único detentor desse conhecimento.
A administradora continuou:
"Disseram que você caiu do céu, mas não acredito nisso nem por um segundo. Se esse fosse o caso, era pra estar morto. Não vejo em você um par de asas." Pareceu entoar a última expressão com certo desdém. Então ela apontou para o peito de Johan, envolto naquele tecido escuro. "Bem, poderia estar morto de qualquer forma, tinha uma espada cravada aí entre as costelas".
Averianora.
A mente de Johan evocou a palavra assim que a administradora mencionou a espada. Nunca tinha ouvido aquele nome antes, tinha? Achava que não. Tudo estava nebuloso e Johan odiava aquela sensação. Não estar sob o controle de si mesmo era algo corriqueiro na vida do peregrino, ainda mais levando em consideração a natureza desastrosa de suas habilidades. Em qualquer outra situação ele estaria tranquilo, sabia que poderia se livrar de qualquer problema, por mais que levasse tempo. Porém, a atual situação envolvia a perda de sua própria memória, algo que nunca tinha acontecido. Não havia motivos para ter perdido a noção dos acontecimentos recentes — não era a primeira vez que havia se materializado a alguns metros do chão, nem mesmo seria a última. Quedas faziam parte do seu dia a dia. Por um momento ele ponderou sobre o que a mulher dissera: já sabia onde estava e como havia chegado ali, mas ainda não sabia de onde tinha vindo. Durante esses breves momentos, Johan ficou tão preocupado com as atuais circunstâncias que demorou para se dar conta da real dimensão das outras coisas que a administradora tinha dito. Estava em Alto Castelo, a morada da Tríplice. Estava no domínio dos imortais e um deles havia lhe curado. Nunca tinha estado na presença de um imortal antes, mesmo tendo morado durante quase toda a sua vida na mesma cidade que os Três. Além do mais, Hansen jamais permitiria. O sacerdote nutria um sentimento esquisito pelos imortais. Pensando nisso Johan sentiu alívio, não havia se esquecido de suas origens, de seu mentor. Lembrava de Hansen e dos Peregrinos, lembrava de sua verdadeira família. Precisava voltar para ela.
"Preciso sair daqui", disse levantando-se da cama. A administradora não o impediu. Queria pular pela janela e se desmaterializar até o chão, mas não tinha noção da altura que estava e não poderia correr esse risco. Era preciso conhecer o local para o qual iria se materializar. Pelo menos era preciso ver. Antes que pudesse se aproximar do parapeito, uma força invisível o impediu de prosseguir. Johan olhou para a administradora, que exibia no rosto um sorriso debochado. Ele tentou dar mais um passo, mas algo invisível parecia o puxar novamente em direção à cama, não importava o esforço que fazia. Incrédulo, Johan voltou-se para a mulher.
"O que é isso? Eu preciso sair daqui!", ele esbravejou, a paciência se esvaindo. "Eu sou um prisioneiro?".
O sorriso da administradora foi sumindo.
"Sente-se, homem. Eu ainda não terminei. Se você realmente se esqueceu de tudo o que viveu nas últimas horas, precisa saber do resto."
À contragosto, Johan se sentou na beirada da cama. Olhava para a janela com uma expressão de tristeza e aquele sentimento de impotência se intensificou. Mais uma vez voltou seu olhar para a administradora.
"Veja bem", continuou ela, "se apareceu do nada ou não, ontem de fato você estava caído à porta de Alto Castelo, quase morto. Tinha uma espada cravada no seu abdômen e todo mundo que o viu achou que logo morreria. Deveria ter morrido ali mesmo na praça se as palavras que saíram de sua boca não tivessem ajudado a te salvar. Foi por causa do que você disse que os guardas mandaram me chamar."
Ainda que frustrado, Johan ouvia tudo com calma.
"Você disse que Alvera havia despertado. Ainda disse uma porção de outras coisas ininteligíveis, pois estava morrendo, mas só a primeira parte já foi o suficiente pra chamar atenção de Vossas Grandezas. Foi quando ordenaram que o trouxesse para dentro".
"Quem é Alvera?". Johan não se lembrava de ninguém com aquele nome.
"Ora, homem, eu é que sei? Você já não conseguia se manter de pé, teve de ser carregado por mim e pelos coitados da Alta Guarda que estavam nos portões. Sujou de sangue toda minha roupa e, quando eu te xinguei, você devolveu em mil insultos. Alguns eu pude decifrar entre os seus murmúrios."
Ele fez uma careta.
"Enfim, você foi levado à presença de Vossa Grandeza Allana, que rapidamente curou o seu ferimento. É devido à misericórdia dela que você está vivo hoje e eu acho que deveria agradecer."
Johan ficava mais confuso a cada minuto, não se lembrava de nada daquilo que a administradora lhe contava. Por que estava ali naquela posição de espectador ouvindo tudo o que ele supostamente havia vivido? Não deveria se lembrar? Havia passado por tudo aquilo horas atrás ou pelo menos achava que sim, se resolvesse acreditar na mulher. De qualquer forma, toda essa confusão ainda não explicava sua perda de memória, ou mesmo o porquê de estar aprisionado naquela cama.
Estava odiando cada segundo.
"Lisa, certo? Por que eu deveria acreditar em você?"
Ela revirou os olhos e o encarou.
"Você não está em posição de discordar. Escute, meus senhores não encaram ameaças com leviandade. As coisas que você disse chamaram atenção da Tríplice e depois de curado você passou a hora seguinte no salão dos tronos, sozinho com eles. Nem a Alta Guarda esteve presente. Nem eu pude testemunhar. Você sabe a última vez que algo assim aconteceu? Nunca. Nos anos que sirvo o castelo, foi a primeira vez que vi acontecer. O que quer que tenha sido dito dentro daquele cômodo foi o suficiente para que você seja mantido prisioneiro. E ainda um prisioneiro de cacife, porque poderia ter simplesmente sido jogado nos Calabouços, mas está aqui confortável em um quarto de hóspedes que também nunca foi usado".
Johan precisava de mais. Era prisioneiro da Tríplice. Os imortais de Daeva estavam mantendo Johan preso em um quarto de hóspedes. Ele havia dito palavras que nunca antes ouvira. Era demais pra sua mente, naquele estado, aceitar. Estava sem contato com o mundo externo e não tinha como se desmaterializar, não sabia como era o local ao redor daquele cômodo, poderia se materializar em uma parede e acabar morto. Além disso, achava que aquela barreira invisível também o impediria de tentar. A administradora finalmente ficou em silêncio, Johan imaginou que talvez ela estivesse o deixando refletir sobre o assunto. Precisava de mais.
"A espada que estava comigo, onde está agora?"
Ela apontou para a beirada da cama, aos seus pés. Johan não havia notado antes alí algo envolto em um tecido vermelho e bordado. Era longo, tomava boa parte da extensão da cama. Ele ergueu-se e alcançou o embrulho. Foi desenrolando o tecido com cuidado até deixar exposta a arma que quase lhe tirara a vida. A bainha era feita de metal e couro negro, ou algum material parecido, simples e sem detalhes. A empunhadura era feita do mesmo material. Parecia velha. Johan a pegou com cuidado e sentiu algo familiar na forma como a manuseava. Já havia usado uma espada antes, mas não era uma de suas armas de preferência. Desembainhou a lâmina com um ruído metálico e o metal opaco reluziu fracamente a luz do cômodo. À primeira vista, era como qualquer outra espada. Não possuía nenhum elemento ou característica que a distinguisse de qualquer outra. Qual era mesmo a palavra que havia pensado antes? Averianora. O nome facilmente voltou à sua memória, claro como água. Johan tornou a embainhar a lâmina e deixou a espada sobre os tecidos que antes a envolviam. Ainda estava sentindo a frustração de não possuir o mínimo de controle sobre aquela situação toda. Havia quase morrido e fora salvo por um dos imortais que, então, o fizera prisioneiro. A Tríplice. Ninguém sabia como havia surgido, mas governava a cidade de Catharsis e todo o continente desde a fundação da capital, há mais de mil anos. Os livros de história se referiam aos três alados como seres imaculados e eram reverenciados naquela terra como deuses.
A administradora Lisa soltou mais um suspiro.
"Bem, é isso. Por algum motivo você ganhou o direito de ficar com a espada. Eu preciso ir, o dever me espera. Se precisar de mim, avise um dos guardas", disse antes de sair e fechar a porta atrás de si.
Ao se ver sozinho novamente, agora sabendo a real situação na qual se encontrava, Johan sentiu-se desolado. Precisava sair daquele lugar e voltar para sua família, mostrar a Hansen a espada. Com certeza o sacerdote saberia o que fazer com ela. Precisava, acima de tudo, recuperar sua memória e lembrar da natureza da conversa que havia travado com a Tríplice. Nunca havia tido a chance de estar na presença de um imortal e agora jazia ali, na fortaleza deles, depois de dizer sabe lá o que para todos os três. Preso.
Tentando deixar parte da frustração de lado, Johan pegou Averianora novamente e colocou-a em seu colo. Um olhar mais atencioso revelou que os adornos entalhados na bainha não se pareciam com nada que ele já tivesse visto em suas viagens. O material era estranhamente quente, Johan sentiu as pontas dos dedos se aquecerem levemente conforme passava a mão pelos relevos. Era quase como tocar… Pele? Ele estremeceu quando sentiu uma espécie de pulsação partir da espada e puxou os dedos, soltando um arfado. Céus, o que é essa arma?
"Se pensar demais, sua cabeça vai explodir", disse uma voz.
Johan pulou. Parecia vir da espada.
Ela falava.

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