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01 - Peregrinos

  • Foto do escritor: jeffpavanin
    jeffpavanin
  • 18 de mar. de 2017
  • 9 min de leitura

Atualizado: há 15 horas

O despenhadeiro não a assustava. Estava parada de pé acima de um pequeno monte, observando a grande movimentação logo abaixo, no vale. Uma massa de pessoas, dentre elas jovens, idosos, mulheres e crianças, se organizava em uma fila interminável, rumando para a grande Gahari. A cidade se escondia em meio a grandes montanhas. Para adentrá-la, aqueles que não o faziam através do ar precisavam se esgueirar por uma estrada entre dois penhascos. Apesar de o local parecer assustador, a estrada era segura, pois a encosta das montanhas protegia os habitantes de qualquer animal selvagem ou tempestade de areia. Enquanto ela observava, o grupo de pessoas começou a passar pelos homens que guardavam os enormes portões da cidade. Os guardas eram corpulentos e vestiam tecidos amarelados por baixo da armadura de metal. Eles guiavam as pessoas para dentro das muralhas através de gestos e gritos.

Ela observava tudo, sem saber ao certo o que aquilo significava. Ao seu lado estava Torius, seu irmão de clã. Eram alados. Suas asas simples estavam dobradas atrás do corpo e os olhos seguiam a movimentação com interesse.

"O que acha que vão fazer com essa gente?'', perguntou ela ao irmão de clã. Por um momento desviou o olhar da fila de pessoas para encará-lo.

"Os mais fortes talvez tenham chance na guarda da cidade", respondeu ele com os olhos fixos à cena. "Temo que os fracos e as crianças sejam colocados em qualquer baixada. Os príncipes de Gahari de mal nada farão, mas também não proverão moradia de qualidade ou alimento suficiente para todo mundo."

"E os imortais não têm poder aqui."

"Não", ele concordou. "Essa gente terá de trabalhar pela sobrevivência."

"Bem, era o esperado. Com a cidade natal em ruínas, tinham que fugir. Fiquei espantada com o consentimento rápido dos príncipes."

"Para eles é um benefício receber refugiados. Assim serão bem quistos pelos mercadores e por todos que vivem dentro e fora da cidade. De qualquer forma não foi sorte, usamos a palavra mágica."

Ela riu e, assentindo, virou de costas para a movimentação, ajeitando a corda do arco em seu peito. O arco balançou de leve, os pequenos sinos que dele pendiam tilintavam ao vento. A alada chamava-se Alaïs e, juntamente com Torius e mais trezentos irmãos de clã, fazia parte dos Peregrinos. Assim eles eram chamados por não possuírem moradia fixa e permanecerem em constante movimento. Atualmente passavam pelas Terras Vãs, o maior território ao sul de Ala, o maior dos continentes. Apesar de pertencer aos Peregrinos, ela e cada um dos irmãos de clã um dia fizeram parte de alguma família, em alguma cidade de algum reino. Alaïs e Torius antes de ingressarem no grupo tinham residido em um reino ao norte.  

Alaïs olhou para o céu e disse ao irmão de clã:

"Os astros estão quase em ápice. É melhor voltarmos."

Torius abriu suas asas e alçou voo rapidamente, seguido pela peregrina. Os astros, como eram chamadas as duas estrelas que iluminavam os céus de Daeva durante o dia, estavam quase alinhados no céu àquela hora. O primeiro, o maior e mais potente, trazia luz e vida ao planeta desde seu primórdio. O segundo, porém, menor e avermelhado, havia chegado há alguns anos. Ninguém sabia de onde ou porquê, mas desde sua chegada fazia companhia ao primeiro, nascendo e se pondo em lados quase opostos do horizonte. 

Conforme voavam, os alados sentiam o vento bater em seus rostos, fazendo os alvos cabelos e as vestes leves esvoaçarem atrás de si. Alaïs pensava em seus irmãos de clã. Os Peregrinos eram liderados por um sacerdote branco treinado em Rök. Hansen era seu nome. Com a ajuda de outros irmãos de clã, ele era responsável pelo recrutamento e pelo rito de passagem que oficializava a entrada de um novo membro no grande grupo. Antes da chegada do segundo astro, para ingressar nos Peregrinos, o candidato era submetido a um jejum de três dias e, ao fim do período, participava da caça a um lince na Mata da Solidão. Na caça, o candidato portava apenas uma adaga feita de osso e deveria matar o lince e então prepará-lo para servir de alimento a todos. Por vezes, mais de uma pessoa solicitava ingresso no mesmo período. Assim, eram providenciados mais animais para a caça e um rito coletivo era organizado. Nos últimos anos, porém, Hansen determinou que a caça ao lince deixasse de ser um rito de passagem. A partir daí, quem quisesse ingressar nos Peregrinos era bem vindo, sem rito. Contudo, a caça a animais e a coleta de frutas e vegetais ainda era uma necessidade e todos se mobilizavam para buscar alimento.

Os Peregrinos não eram um grupo tão famoso fora de Ala, mas alguns senhores de diversas terras já tinham ouvido falar deles em algum momento. Eles buscavam fazer valer os direitos de qualquer cidadão que encontrassem pelo caminho, muitas vezes abdicando de seus próprios direitos. Por isso escolhiam não possuir moradia fixa e andar por terras livres sobrevivendo do que encontravam na natureza.

Os que solicitavam entrada no clã muitas vezes eram prisioneiros que já tinham cumprido o tempo de condenação, guerreiros aposentados, mulheres que desistiram da vida de prostituição ou mesmo adolescentes em busca de alguma aventura. Hansen aceitava qualquer pessoa, homem ou mulher, humano ou alado, desde que se comprometesse com a causa. Na época da criação do grupo eram menos de dez membros, hoje somavam quase trezentos. Alaïs tinha entrado para o clã cinco anos antes, mas Torius já estava com eles há mais de oito. O alimento por vezes era escasso, a cama não era boa, mas as companhias e o propósito do grupo a moviam e compensavam qualquer desconforto.

Enquanto Hansen ficava para trás e cuidava do grupo, Torius e Alaïs verificavam a situação em Gahari. Tinham chegado à cidade no dia anterior, depois de ouvirem a notícia de que o pequeno vilarejo de Lima tinha sido incendiado. Tiveram esperanças de encontrar com os príncipes na grande fortaleza de Gahari naquela tarde.

"Klaus encontra-se muito doente", havia dito um guarda. "Não receberá visitas hoje."

Alaïs rolou os olhos nas órbitas. Todos sabiam que os gêmeos nunca apareciam em público sem a presença um do outro. Isso significava que Nicolai, seu gêmeo, também não receberia os enviados. Foi quando Torius disse ao guarda:

"Diga aos seus senhores que viemos a mando de Meredit."

O homem se espantou. Não foi preciso dizer aos gêmeos quem tinha enviado os dois peregrinos. Era de ordem suprema encaminhar ao salão principal da fortaleza qualquer um que viesse em nome de Meredit. Minutos depois, Torius e Alaïs se encontravam frente a frente com os príncipes. Eram jovens. Os dois estavam sentados em montes de almofadas coloridas de seda sobre um baixo e largo patamar dourado, no centro do salão. Vestiam ricos gibões de cetim vermelho ghäleno adornados com fios de ouro e mantos listrados. Duas leves coroas de marfim repousavam em seus cabelos. No momento da visita, eles estavam no meio de uma refeição, cada um em uma ponta de uma longa mesa baixa.

Ajoelhado, o guarda apresentou os visitantes.

"Senhores, esses são Torius e Alaïs, dos Peregrinos. Ambos são enviados da senhora Meredit d'Lume."

Na extremidade esquerda da mesa que os separava, Nicolai largou seu garfo dourado sobre o prato em que comia. Por um momento, o ruído metálico que percorreu todo o salão foi o único som a ser ouvido. Seu irmão Klaus ainda mastigava a comida do outro lado, rindo. O guarda não soube onde enfiar a cara vermelha de vergonha. Todos na fortaleza sabiam que Meredit d'Lume era um nome que deveria ser evitado naquele local apesar de ser de grande importância. Ela era a mulher que liderava os Peregrinos junto de Hansen, e também era conhecida por ser a mãe dos gêmeos ali sentados. Meredit havia sido rainha regente de Gahari junto de seu esposo, o rei Regis Villicent. Após a morte do rei, decidiu abdicar da vida na fortaleza e seguir o caminho dos peregrinos, deixando o poder na mão dos filhos.

"Deem um passo à frente", disse Klaus aos visitantes.

Torius fez como solicitado e ajoelhou-se.

"Venho em nome de sua mãe, majestade."

"Isso nós já sabemos", cortou Nicolai. "O que essa traidora quer de nós?"

"Que indelicado, Nicolai", o irmão lhe disse. Virou-se para os visitantes com falsa ternura e continuou: "Peregrinos, o que os traz à cidade?"

Torius pigarreou. Atrás dele, ainda de pé, Alaïs se retorceu.

"Viemos em busca de ajuda. Um povoado vizinho, Lima, foi incendiado nesta manhã... Como sabem, príncipes, o segundo astro tem feito muitas vítimas nos últimos anos. O tempo está seco. Gostaríamos de pedir abrigo para a população que vem de lá."

Direto ao ponto. Com os Peregrinos nunca havia rodeios em assuntos de urgência. As pessoas de Lima precisavam de abrigo, a cidade mais próxima era Gahari. Por sorte tinham conhecidos importantes. Esse era o ofício que dava objetivo ao grupo: justiça. Os Peregrinos buscavam sempre fazer o melhor que podiam por todos os cidadãos.

Klaus, ainda sorrindo, olhou para o irmão do outro lado da mesa. A expressão de Nicolai era de puro ódio. Provavelmente ainda pensava na mãe e, talvez, nem tivesse prestado atenção ao pedido.

"Abrigo?", prosseguiu Klaus. "E são quantas as pessoas que necessitam de abrigo, peregrino?

"Cento e cinquenta, eu calculo. São em sua maioria mulheres e crianças. A população de Lima é forte e dedicada, príncipe. Alguns talvez possam ajudar na guarda da cidade, outros são talentosos artesãos e comerciantes."

"Desses assuntos trataremos nós." A expressão de Nicolai transbordava irritação. "Nossa mãe é quem pede ajuda para eles?"

"Sim, senhor."

"Eles podem vir para cá, vamos acolher. A cidade é grande, trabalho não faltará. Você concorda, Nico?"

Nicolai mantinha o semblante fechado, mas assentiu. Com os lábios entreabertos, Alaïs parecia surpresa com a rápida decisão. Torius se levantou e disse:

"Em nome dos Peregrinos, eu agradeço."

E assim se deu o encontro com os príncipes de Gahari. 

Agora, dando uma última olhada na cidade ao longe, Torius rodopiou no ar e viu a irmã de clã fazer o mesmo. Segundos depois, ambos se encontravam em outra paisagem: os penhascos de terra vermelha que rodeavam a cidade de Gahari haviam sumido, dando lugar a inúmeros montes verdes que se perdiam no horizonte. Ainda assim, era possível ver ao longe a grande área avermelhada que haviam deixado para trás. Os alados não possuem muitas habilidades que os humanos também não dominem, contudo com a desmaterialização era diferente. Havia no mundo poucas pessoas que conheciam essa arte e a maioria delas pertencia aos Peregrinos. Todas haviam sido treinadas por Hansen, quando ele resolveu que o grupo poderia fazer algo mais do que somente andar de um lado para outro. Hansen era um homem de muitas habilidades e algumas eram transmitidas ao grupo.

Alaïs apareceu com um estalo ao lado de Torius, que pairava a alguns metros da abóbada de uma grande árvore. Diminuiu a velocidade e encarou o semblante do irmão de clã.

"Há algo errado?", perguntou ele.

"Eu ainda não me acostumei com essa habilidade de Hansen. Estou meio tonta."

"Você se acostuma, tenho certeza. Eu me acostumei". Com o dedo indicador ele cutucou a barriga da irmã de clã por cima do couro. "Nos primeiros dias eu sentia muito enjoo toda vez que me desmaterializava. Aí descobri que era falta de uma boa refeição. Acho que é disso que você está precisando."

"Talvez seja," sorriu, com vergonha.

Continuaram a voar por mais alguns minutos até encontrarem o centro da grande floresta que chamavam de Mata da Solidão. Ela tinha muitos quilômetros de extensão e altura – algumas das árvores milenares chegavam a atingir quarenta metros. Um ser humano por terra poderia demorar vários dias para sair de seus limites. Os Peregrinos haviam montado um acampamento provisório perto de um riacho ali no centro da mata, onde água e provisões não faltariam. Alaïs e Torius haviam acabado de atravessar a densa abóbada da mata quando avistaram o acampamento: as tendas estavam perto umas das outras, em formação quase geométrica. Olhando o acampamento todo ali de cima, parecia um enorme quadrado malformado.

Eles aterrissaram em uma pequena área ao lado da tenda principal. Os irmãos de clã que trabalhavam fora das tendas – pescando ou cortando lenha – saudaram os recém-chegados com reverências e sorrisos. No grupo, humanos e alados viviam em sintonia; a rivalidade por vezes existente entre as duas espécies ali não o era. Sem demora, Torius e Alais entraram na grande tenda branca esperando encontrar Hansen e Meredit. Somente o homem estava presente. O sacerdote estava sentado em sua almofada preferida, disposta junto de outras em volta de uma peça quadrada que lhe servia de mesa. Com alguns papeis na mão, Hansen mantivera os olhos fixos na entrada da tenda desde antes de os dois alados entrarem. Havia sentido a presença dos irmãos de clã assim que se materializaram nas alturas.

"Então Meredit estava certa", disse ele, sorrindo.

Apesar de ser um sacerdote, Hansen vestia um gibão de couro fervido e tingido de negro por cima de uma camisa branca de mangas compridas e calças de linho. Era jovem para um sacerdote, aparentava ter menos de quarenta anos, seus cabelos castanhos eram curtos e desarrumados. Pareceria um humano qualquer ao primeiro olhar, mas bastavam alguns minutos de conversa com ele para que notassem suas peculiaridades. Ele era capaz de predizer coisas, sentir vibrações no ar e conhecia muitas coisas. Seus sentidos eram mais aguçados, o que ajudava muito o grupo em diversas situações. Ficou de pé ao cumprimentar os recém-chegados.

"Sim, mestre Hansen", assentiu Alaïs. "Antes nos disseram que Klaus estava doente, mas bastou mencionar um nome para que nos recebessem. Onde está ela, afinal?"

"Foi até o lago", respondeu Hansen. Inspirou o ar lentamente antes de prosseguir. "Já está voltando com peixes frescos."

Os alados não pareciam surpresos, estavam acostumados com as premonições do sacerdote.

"E como estão os príncipes?", indagou ele.

"Não estão doentes", foi Alaïs quem respondeu. "Estavam comendo muito bem também. Tinham um grande banquete."

"Não me surpreende. Gahari é uma cidade mercantil, eles têm acesso a alimentos do mundo inteiro. Podem ter tudo o que quiserem. Não parecem filhos de Meredit."

Os três sorriram. Hansen fez um gesto para que os dois o seguissem para fora da tenda, onde alguns homens ainda cortavam lenha. Tinham acendido uma fogueira entre as enormes árvores e outros peregrinos tiravam as tripas de alguns peixes. Inúmeras outras fogueiras iam aparecendo por toda a extensão do terreno repleto de cabanas. O sol logo ia se pôr e os peregrinos já preparavam o fogo que iluminaria a noite e daria a eles o que comer. Hansen e os dois alados aproveitaram que o céu ainda estava claro para ajudar a preparar a janta. Foi quando ouviram um barulho de cascos.

Finalmente Meredit estava voltando.


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