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04 - Averianora

  • Foto do escritor: jeffpavanin
    jeffpavanin
  • 18 de fev.
  • 14 min de leitura

Johan piscou os olhos algumas vezes para se certificar de que não estava delirando. Passou a mão pelo rosto para sentir que estava mesmo acordado, mas não respondeu a voz que lhe falara. Quando mais jovem, já havia tido a sensação de que estava enlouquecendo, com seus sonhos sem sentido e as mesmas imagens lhe saltando a mente de tempos em tempos, mas nunca havia conversado sozinho antes. Ouvir vozes era algo que definitivamente não estava em sua lista de excentricidades. Seu pai poderia lhe dizer que estava tudo bem, que coisas estranhas realmente podem acontecer, afinal, era versado em diversas artes desconhecidas, as demonstrava e fazia questão de ensinar algumas aos mais próximos. Contudo, Hansen não estava ali agora. Com a lembrança do pai lhe invadindo a mente, olhou pra espada mais uma vez. A bainha pesada de metal escuro continuava inanimada à sua frente ao pé da cama da qual era prisioneiro.

"Nós não temos o dia todo, sabe", a voz continuou a dizer. "Você precisa aceitar que está falando com um objeto para podermos continuar com isso".

Johan manteve os olhos arregalados. Deveria responder àquela voz? Algo nela lhe parecia extremamente familiar, apesar do tom. Reuniu toda a sanidade que ainda lhe restava e pigarrou levemente antes de responder.

"Ahn, oi? Eu não posso estar falando com um objeto", ele afirmou, mais para si do que para a espada. Mal podia acreditar.

"Johan, no momento, você está. Preciso continuar com o plano."

A espada parecia lhe conhecer. Falava com ele como se tivessem continuando um assunto que haviam começado em algum momento antes. Johan não estava entendendo nada, mas respirou fundo mais uma vez e resolveu abraçar a situação. Era o mais lógico a se fazer. Apesar de parecer loucura, conversaria com a espada.

"O que você está dizendo? Temos que continuar com o que exatamente?"

A espada pareceu suspirar.

"Ontem a noite você caiu aqui, como a mulher já lhe disse. Já te adianto que você não se lembra de nada por minha causa. Não foi uma contusão ou algo do tipo, eu precisei de você por uns instantes e por isso você não se lembra."

"Como assim, precisou de mim? Eu não estou entendendo nada que você está dizendo, espada. Precisa ser clara comigo", ele tentava ser racional.

"Você já vai entender. Preciso que me faça um favor, pode ser?"

Johan estava farto daquela situação. Sem memória, preso em um local que não esperava, impotente. Se quisesse saber mais, precisava colaborar, ao que parecia. Teria que engolir qualquer coisa que acontecesse a partir daquele momento. Contar com a espada era tudo o que tinha.

"Certo", respondeu. "O que eu preciso fazer?"

"Pegue o artefato. Empunhe Averianora, eu cuido do resto."

E assim Johan o fez. Mais uma vez pegou a espada que estava em sua frente, removeu o tecido completamente e cuidadosamente removeu-a também da bainha. A espada voltou a emitir aquele brilho opaco, respondendo às luzes do quarto. Segurou a empunhadura firmemente, como a voz havia lhe instruído, e esperou. Antes que pudesse perguntar o que aconteceria em seguida, uma forte sonolência tomou conta de sua mente e Johan precisou se deitar, ainda segurando a espada. Sentia que havia acabado de tomar um porre, a cabeça girando, como fazia após beber um litro de cerveja na taverna Beiço de Porco, em Gahari. Que estranha sensação, a boca estava seca, não havia tomado nada, mas a tontura era bem real. Tentou reclamar com a espada, mas de seus lábios só saíram murmúrios ininteligíveis. Foi quando apagou.

Quando retomou sua consciência, estava novamente no interior daquela caverna no topo da montanha em Elëgar, nas Ilhas de Pedra, onde havia encontrado aquilo que buscou durante toda sua vida. Lembrava-se de ter chegado até ali, estava nas Terras Escuras. Vestia roupas empoeiradas, havia acabado de subir a encosta da montanha. Tinha o capuz abaixado, o trapo que lhe cobria a boca agora estava em seu pescoço. A claridade estranha iluminava toda a caverna, como se lembrava. Percebeu que lágrimas lhe escorriam o rosto, estava finalmente frente a frente com o seu sonho. Era real dessa vez. Passou novamente os dedos pela superfície cristalina que o separava de um ser que nunca tinha visto antes, mas que agora via, encapsulado naquela estranha e enorme estrutura parecida com um esquife. Era completamente transparente. Dentro estava deitada uma figura talvez duas vezes maior que ele mesmo, estranhamente em paz. Parecia dormir um sono profundo e sem pesadelos. Johan percebeu que era uma mulher. Estava vestida em tecidos claros e repousava em uma espécie de cama almofadada. Fora isso, não havia mais nada. 

Johan resolveu analisar a caverna iluminada. Percebeu que o brilho vinha de pequenas escrituras que tomavam toda a extensão das paredes rugosas da caverna. Não estavam em um idioma que conhecia. As letras lembravam as runas valanas, mas não o eram. Brilhavam em dourado, pulsando levemente, como em uma respiração. Ele tocou uma das palavras e sentiu que a pedra estava quente, como se o fogo a tivesse tomado instantes antes. Rapidamente retirou a mão, lembranças do fogo de sua infância lhe invadindo a mente. Apesar disso, o clima na caverna era frio. Tudo era tão diferente. Nunca havia se deparado com nada igual em suas viagens por Daeva, mas sentia que aquilo era certo, como se sempre tivesse feito parte de sua vida. Johan voltou ao esquife transparente, observando a mulher que nele repousava. Quem seria ela? Por que era tão alta? Não poderia ser humana, poderia? Dúvidas e curiosidade brotavam em sua mente a todo instante. Por que ele? Por que aquilo havia lhe perseguido desde sua infância? Nada fazia sentido, mas ao mesmo tempo tudo fazia. Em uma segunda análise, Johan percebeu que as mesmas runas que tomavam as paredes da caverna também estavam gravadas em uma placa prateada que não tinha visto antes, em um dos lados do esquife. Mais uma vez ele levou a mão àqueles estranhos símbolos e imediatamente a estrutura começou a vibrar. 

Johan deu alguns passos para trás em reação e observou as vibrações que tomaram a estrutura. De início não havia som algum, mas aos poucos identificou um zumbido baixo, que foi tomando proporções até se transformar em um ruído quase musical. As runas na parede da caverna começaram a emitir um brilho mais intenso, tão intenso a ponto de quase cegar. Johan fechou os olhos por um tempo que não conseguiu determinar e assim ficou. Quando o barulho diminuiu, Johan tornou a abrir os olhos e percebeu que o esquife estava diferente. A estrutura havia se aberto, deixando a figura da mulher exposta à temperatura fria da caverna. Estava mais escuro e as palavras gravadas nas paredes haviam sumido. O brilho também sumira. Quando olhou novamente para a mulher, percebeu que ela acordava. Se mexia aos poucos, como se despertasse daquele sono profundo após muito tempo. Um esboço de sorriso se formou nos lábios da mulher, mas sumiu logo que ela avistou Johan. Imediatamente pareceu assustada. Começou a falar baixo, em um idioma que Johan não identificou. 

"Eu não entendo o que está dizendo", disse Johan, como se se desculpasse.

Um olhar de compreensão tomou conta da mulher, ela parecia ter entendido o que Johan lhe dissera.

"Heriandir é quem deveria me despertar. Você não é ele", a mulher falou no idioma comum de Daeva. Tinha uma voz clara, mas comum. Não tinha sotaque algum.

Ele se aproximou novamente. "Meu nome é Johan." Ele tentou não gaguejar. Estava falando com uma mulher inumanamente alta, agora sentada em seu esquife, naquela espécie de cama branca. "Não sei quem é Heriandir, eu só toquei essa placa aí do lado e uma coisa louca aconteceu, tudo começou a tremer e você acordou. Quem é você?"

"Meu nome é Alvera. Céus, quanto tempo se passou? Que lugar é esse?"

"Não tenho resposta pra primeira pergunta, mas você está quase no topo de uma montanha nas Ilhas de Pedra, em Elëgar."

"Elëgar? Eu deveria estar com os outros em Hannelore.

Os outros?, ele pensou. Havia mais pessoas como aquela mulher. E que lugar era Hannelore? 

"Olha, eu não sei mais do que você", ele continuou, "mas algo me trouxe até aqui."

Será que ele deveria lhe contar tudo? Relatar seu sonho, o que o movera até aquele momento? Parecia correto. Contudo, antes que pudesse começar, a mulher se levantou do esquife.

"Meu relicário parece danificado, algo não está certo", ela falava mais para si do que para Johan, ainda no idioma comum de Daeva. Parecia avaliar a situação.

Ao sair do esquife, ou do relicário, como ela o denominou, colocou os pés descalços no chão frio da caverna. Observou a estrutura de todos os ângulos possíveis, até tocar a placa lateral novamente, a mesma que Johan havia tocado. A estrutura voltou a se fechar. A lâmina de vidro transparente que tampava o relicário apareceu do nada, como se se materializasse. Johan pensou na sua própria técnica de materialização, que usava para se deslocar.

"Não sei", continuou ela, "mas parece estar tudo no seu devido lugar, menos eu. Era pra eu ter despertado em Hannelore, por Heriandir."

Alvera voltou-se para Johan, olhando para baixo. Ela era muito alta.

"Agora me pergunto como você conseguiu me despertar."

Continuou olhando para ele, como se esperasse uma resposta. Johan achou que talvez aquele fosse o melhor momento para poder contar àquela mulher tudo sobre a sua busca. E assim o fez. Contou a ela sobre sua infância, sobre o casebre em chamas, a perda de seus pais. Contou que um bom homem havia o encontrado no meio do fogo e que a partir dali cuidou dele como se fosse filho de seu sangue. Contou sobre os sonhos recorrentes que passou a ter com aquela montanha, com a luz que dela saía, com a queda. A obsessão de Johan em encontrar aquela montanha para pôr fim àqueles sonhos e como Hansen o incentivou. Contou a Alvera sobre a conversa que ouvira em Gahari a respeito daquele lugar. Enfim, contou a ela sobre sua viagem, sobre a arte da desmaterialização, que o ajudou a chegar até ali, e também sobre como a havia encontrado. A mulher ouviu tudo com paciência, sentando-se no chão para que ficasse à altura de Johan até que ele acabasse. Era surreal falar aquilo para outra pessoa que não Hansen. Ele continuava se sentindo aliviado, só não sabia o porquê.

"Sinto muito pelas suas perdas, Johan", disse ela. Parecia genuíno. "Contudo, eu ainda não consigo entender o que de fato aconteceu comigo. Talvez nós possamos nos ajudar."

A história não parecia fazer sentido para Alvera. Johan se sentiu um pouco decepcionado. Em sua cabeça, aquele era o momento que definia praticamente toda a sua existência e nenhum dos dois ali presentes sabia dizer algo lógico a respeito. 

"Como posso ajudar?", foi só o que ele conseguiu dizer.

"Comece me dizendo quem são seus líderes. Quem governa esse lugar."

Então, mais uma vez, Johan contou a ela tudo o que sabia. Alí em Elëgar, não havia governo. As ilhas eram remotas e pouco visitadas. As Ilhas de Prata, como eram chamadas as terras mais próximas do mundo civilizado, era formada por pequenos povoados e fazendeiros que viviam em paz em uma terra sem lei. As Ilhas de Pedra, entretanto, não eram um ponto turístico. Johan contou que em Ala quem governava eram os príncipes de Gahari, mas omitiu as informações que envolviam Meredit. Contudo, foi quando chegou ao relato sobre os líderes de Ghäle, o maior dos continentes em Daeva, que Alvera pareceu se interessar mais. Johan contou sobre a Tríplice, os imortais que governavam o continente há mil anos, conforme dizia a lenda.

"Imortais?" Ela parecia aliviada. "Preciso me encontrar com eles."

Johan se sentiu imediatamente alarmado. Como iria sair daquele lugar com uma mulher gigante ao seu lado? Ninguém nunca na história do mundo havia encontrado um ser como Alvera. A mulher parecia humana, sim, mas seu tamanho causaria um também enorme rebuliço. Ela viraria uma atração turística, seria estudada. 

"Alvera, desculpe pelo que vou dizer, mas as pessoas aqui não são como você."

"Como assim?", ela não havia entendido a implicação do que Johan dissera, parecia pensar em outra coisa.

"Digo, você é enorme! Estava dormindo dentro desse relicário por não sei quanto tempo, no meio de uma terra sem lei. As paredes tinham runas por todos os lados, eu nunca me deparei com algo parecido antes. Você não parece humana e definitivamente não é alada, não pode ser de Daeva."

Johan falaria mais, mas imediatamente a mulher começou a se mexer. Levantou-se e colocou toda a sua altura em movimento. Foi até a parte de trás do relicário e tocou em uma outra placa que lá havia. Também mais uma vez a estrutura passou a vibrar. Aquele vidro transparente que servia como uma tampa voltou a se desmaterializar, mas dessa vez a superfície acolchoada se encolheu para dentro, dando espaço para algo que parecia vir do interior da estrutura. Parecia ser um segundo esquife transparente, quase da altura da mulher, mas bem mais estreito. Lá dentro estava algo que Johan jamais esperava ver. Era como uma enorme lança, com uma lâmina prateada alvíssima, a empunhadura completamente adornada com a mesma linguagem que antes estava estampada nas paredes da caverna. O mais incrível era que ela brilhava. A caverna voltou a ser inundada por aquele brilho misterioso, que parecia agora vir da lança. A arma era magnífica. Johan resolveu não dizer nada e esperar pelas ações da mulher. Alvera tocou em algo no relicário que envolvia a lança e este também se abriu.

"Averianora", ela disse, pegando a lança. "Sinto que ontem mesmo te brandi."

A mulher gigante girou a lança nos os próprios punhos algumas vezes, fazendo manobras entre uma mão e a outra. Era como se a arma fizesse parte de seu ser, os movimentos eram leves e graciosos, como uma dança. Alvera parecia feliz, e realmente estava, sua expressão não negava. Johan era bom em ler expressões. Contudo, o momento não durou muito, logo Alvera voltou a parecer séria e apreensiva.

"Homem, preciso que confie em mim. Peço, com toda a sinceridade que tenho, que confie. Você pelo jeito é a minha única esperança", disse ela, soando sincera. "Por favor. Você mencionou antes a habilidade que tem de evaporar e aparecer em outro lugar. Eu penso que conheço técnica parecida."

Assim que terminou de falar, Alvera piscou e apareceu do outro lado do relicário. Em um momento ela estava ao lado de Johan, num piscar de olhos já não estava mais. Deixou para trás uma espécie de poeira perolada, que passou a cair lentamente no chão, iluminada pela lança. Tirando o rastro perolado, a habilidade de Alvera de fato era como a desmaterialização. Johan continuou atônito. Tudo naquela situação era familiar demais e ao mesmo tempo tão diferente. O que era aquela mulher? Poderia realmente confiar nela? O resto de sua existência parecia depender disso. Aquele era, afinal, todo o desenrolar do sonho de sua vida.

"Certo, você também consegue se desmaterializar", ele disse ainda um pouco chocado.

Alvera voltou a aparecer ao lado de Johan, um novo rastro perolado a seguiu.

"Mais do que isso. Com a ajuda do artefato posso fazer muito mais. Posso te ensinar, se nossos caminhos se cruzarem novamente."

Mais, pensou Johan. Imaginava o que Hansen acharia se encontrasse com Alvera. As habilidades do peregrino não se comparavam ao que Alvera provavelmente poderia fazer, mas com toda certeza iria surpreender o sacerdote. Pensando no pai, Johan decidiu que era uma questão de honra ajudar aquele ser imaculado, precisava continuar com o que o trouxera até ali.

"Muito bem, vou te ajudar. Só ainda não sei como."

"Primeiro, preciso que pense nos imortais que comentou. Pense no local onde eles devem estar agora, na cidade deles, na casa deles. Onde quer que fique o governo."

Imediatamente Johan pensou em Catharsis, sua cidade natal. A sede da Tríplice era Alto Castelo, a porção de terra flutuante que pairava no centro da grande cidade. Não era difícil, passou parte de sua infância assistindo lá de baixo aquele lugar inalcançável. Pensou na Praça Branca, a parte da cidade na qual o palácio fazia sua descida diária.

"Pronto", afirmou.

Alvera aprovou com um aceno.

"Ótimo. Agora, escute bem. Pelo que me contou, você não tem pleno domínio dessa sua técnica ainda, precisa ver o local para onde está indo com os próprios olhos. A distância provavelmente também é um impedimento. Vou usar Averianora em você pra podermos contornar esses problemas. Você provavelmente não vai gostar."

Alvera voltou a brandir a lança e murmurou algumas palavras a si mesma - ao menos Johan não conseguiu ouvir nenhuma delas. O brilho da lança se intensificou e novamente ele precisou fechar os olhos para que aquilo não o cegasse. Quando os abriu novamente, Alvera brandia uma outra arma. Era uma espada ordinariamente comum. Diferente da lança, a espada não brilhava e não levava adornos dourados. Era como uma arma qualquer.

Ela olhou novamente para Johan.

"Quando eu gritar o nome do artefato, pense novamente no local e faça o que tiver que fazer para que você se desmaterialize daqui e chegue até lá. O artefato vai te dar toda a energia que você precisar. Faça isso e eu cuido do resto. Mais uma vez, confie em mim, é só o que peço."

Johan se sentiu inseguro. Nunca havia realizado uma desmaterialização para uma distância tão grande. Tinha colocado sua habilidade à prova só pra chegar até ali, fazer o que a mulher pedia era algo insano. Contudo, ela havia pedido que Johan confiasse nela, não havia? O pedido tinha soado completamente sincero. Ela precisava de ajuda, certo? Sonhara com aquele momento, tentava não se esquecer disso. Então, ele assentiu.

"Parece loucura confiar em uma pessoa tão diferente e que acabei de conhecer, mas você me convenceu", ele afirmou. "Vamos logo com isso."

Alvera pegou a lança-agora-espada e a brandiu apontando-a para Johan, que aguardou. Mais uma vez a mulher murmurou algumas palavras, mas foi quando sua voz se fez audível que Johan se preparou.

"Averianora!", Alvera gritou a todos os pulmões.

Johan se apegou a tudo o que Hansen havia lhe ensinado sobre a arte da desmaterialização. Imaginou Alto Castelo com o máximo de detalhes que conseguiu, desde os arcos ornamentados que faziam parte da estrutura, até as cores das paredes brancas e dos telhados dourados. Pensou no cheiro de Catharsis, sentiu a cidade como se estivesse lá, seu barulho, a movimentação dos mercadores e moradores durante todo o dia. Pensou nos ladrilhos do chão da Praça Branca. Transportou sua consciência para lá e sentiu o puxão costumeiro no meio do peito, mas dessa vez o incômodo pareceu muito mais forte. Seu peito doía.

O ambiente em volta de Johan mudou rapidamente. A caverna escura deu espaço para uma claridade amarelada como a alvorada. Todos os elementos que Johan imaginara segundos antes se fizeram presentes e esmagaram os seus sentidos. O cheiro, a pedra, o clima, o barulho, tudo se tornou real. Estava em Catharsis, estava em Alto Castelo. Contudo, algo não parecia certo. Sentia o vento bater em seu rosto, mas não sentiu o chão. Ele percebeu que caía. Era como a segunda parte de seu sonho se tornando também realidade. Quando percebeu, estava no chão.

E tudo ficou escuro.

Com um baque leve, Johan voltou a sentir o conforto de uma cama. Quando abriu os olhos novamente, tinha voltado ao quarto no qual era feito prisioneiro. Notou a mesa com a comida intocada ao lado da cabeceira. A espada estava agora em seu colo. 

Averianora.

"Pronto, agora você se lembra", a espada falava.

E Johan realmente se lembrava. O que antes era um branco em sua mente aos poucos voltou a fazer sentido. Tinha encontrado aquela espada, na forma de uma lança, naquela caverna, dentro daquele relicário, junto daquela mulher estranha. Alvera. 

"Então você cravou a espada em mim", ele passou a mão pelo tecido escuro que envolvia seu peito e abdômen, agora sem dor. 

"Foi preciso. Averianora deveria te dar a força necessária para que você chegasse até aqui. Eu não sabia que a distância era tão grande, agora posso sentir", continuou Alvera.

"Como posso te escutar? Onde está você?". Johan ainda tinha dúvidas.

"Parte da minha consciência está agora no artefato. Convenci aqueles três de que mantivesse a espada consigo. Depois que você chegou aqui, a minha consciência tomou o seu corpo, pois separaram Averianora de você. Eu conversei com a Tríplice em seu corpo, com a sua voz, e a sua consciência adormeceu enquanto isso, por isso não se lembra. Eu agora conheço quem governa esse lugar, e não gostei nada do que vi."

Johan escutava tudo com calma. Toda a situação ainda o fazia se sentir impotente, mas já não estava mais sozinho. Alvera estava ali e poderia ajudar.

"Nós precisamos sair desse lugar", ele afirmou. "Estou preso neste quarto."

"Não por muito tempo, Johan. Quando cheguei aqui, senti uma miríade de coisas. Eu agora sei como agir e preciso de você assim como você precisa de mim. Precisamos ficar."

Ele não conseguia entender. Naquela situação, era a pessoa que menos sabia das coisas. Alvera havia conversado com a Tríplice, os imortais tinham conhecido aquele ser, sabiam de Averianora. Quem era Johan no meio disso tudo? Um simples peregrino em busca de um sonho que agora tinha saído completamente do seu controle. Sentia falta de Hansen e dos irmãos de clã. Sentia falta de Meredit e de seus cuidados. Queria sair dali, mas não podia. Tinha que andar conforme a música e Alvera era a única pessoa em que podia confiar. Mais uma vez, ele decidiu confiar.

"Certo. O que precisamos fazer?"

Alvera não respondeu de imediato, parecia pensar.

"Há algo de que eu preciso aqui nesse lugar, posso sentir. Nós vamos roubá-lo."

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