A Colina
- jeffpavanin
- há 17 minutos
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Palavras-chave: realismo fantástico, ficção sobrenatural, bucolismo.
Quando eu era criança, em uma das pequenas colinas que ladeavam os campos do pacato condado onde eu morava, uma coisa muito estranha aconteceu. Eu tinha apenas dez anos naquela época, mas me lembro de cada detalhe como se tivesse acontecido ontem. Vivia com minha famÃlia em uma fazenda não muito distante do vilarejo, meus pais estavam visitando a cidade grande naquele dia. Quando aconteceu, estávamos somente eu, meus avós e os criados no grande casarão. No dia anterior, enquanto desfrutávamos de um chá com bolo de limão que minha avó ganhou de uma amiga do vilarejo, meu avô nos contou algumas histórias de peixeiro e a cozinheira, em um momento de descuido ou de loucura, quebrou um ovo dentro do cesto de roupas. Fomos dormir cedo, como fazÃamos todos os sábados do verão, eu em minha camisola de algodão e vovó em seu calção.
Lembro-me que na manhã seguinte acordei com um grito longÃnquo. Alguma mulher desesperada corria pelo condado pedindo socorro aos berros (depois eu soube que era a mãe de um amigo de colégio), com uma criança correndo ao seu lado. Levantei assustada e desci as escadas para me deparar com vovó se dirigindo a passos rápidos até à porta da frente. Lá fora, um aglomerado de pessoas seguia do vilarejo para o meio das colinas ao norte da nossa fazenda, com expressões intrigadas no rosto e com pás e podões em punho. Vovó me disse para ficar dentro de casa, preocupada, mas minha teimosia e curiosidade me levaram também para fora. Vovô, curioso como eu, pegou-me pela mão como se oferecesse segurança e, juntos, seguimos em frente.
Pequenos montes e colinas separavam o condado e o vilarejo do restante do mundo como uma muralha, algumas árvores e bosques despontavam em verde naquela época do ano. Aquela área me era muito conhecida, pois saia para brincar ali com o resto das crianças do vilarejo depois das aulas da manhã. Porém, eu antes não tinha visto tanta gente aglomerada lá ao mesmo tempo. Antes mesmo de me perguntar duas vezes o motivo de tanto alvoroço, de longe pude ver: no topo de uma das colinas, ao lado de uma árvore tão grande e verde, estava uma porta. Era imensa – para uma porta –, sua ponta ultrapassava a abóbada da grande árvore. Parecia ser feita de algum material brilhante, pois refletia a luz da manhã em diversos pontos multicoloridos. Era uma visão tão magnÃfica. Conforme chegamos mais perto da colina, pude ver que era do topo à base ornamentada com figuras humanas e também com outras que pareciam ser animais que eu não conhecia.
Olhei pro meu avô sem dizer palavra, como quem indaga sobre o que estávamos vendo, mas ele estava tão perplexo quanto eu. Percebi que as pessoas também olhavam maravilhados para a imensa porta, boquiabertas de surpresa, ao passo em que alguns semblantes não deixavam de transparecer apreensão. Eu estava curiosa, me perguntando como aquela grande estrutura havia chegado até ali, porque na manhã anterior a colina era somente mais uma dentre muitas. Lembro-me que minha avó nos alcançou em algum momento, dando a chance para que meu avô me deixasse em sua companhia e fosse sozinho analisar aquela porta de perto. Com ele também foi o padeiro, o açougueiro, um carpinteiro do vilarejo e também o padre Matias. Eu não gostava muito do padre Matias, ele se achava o dono da verdade absoluta, além de se portar como se governasse o vilarejo. O prefeito há muito morrera e a população havia decidido por não eleger ninguém para substituÃ-lo, apesar de o irmão do prefeito (seu vice) ainda usar o prédio da prefeitura como moradia. Na época eu não sabia de nada disso.
A palavra do padre era a que valia para aqueles que iam à missa aos domingos – o que somava quase toda a população do vilarejo. Aqui e ali algumas senhoras já se encontravam devidamente vestidas para comparecer à missa daquele dia, mas como ainda era muito cedo, a grande maioria das pessoas ainda vestia pijamas, assim como eu. O próprio padre estava metido em um roupão azul puÃdo e corria em direção à grande porta benzendo-se com o sinal da cruz. De longe pude ver o meu avô bater com os nós dos dedos na superfÃcie da porta enquanto o padeiro e o carpinteiro corriam até o outro lado dela para ver se lá tinha alguma coisa, mas não tinha. A porta, inclusive, não trazia nenhum vestÃgio de uma maçaneta. Ela havia aparecido ali sem ninguém notar, aparentemente sem produzir ruÃdo ou barulho, e agora se impunha, reluzente, perante os curiosos cidadãos.
Durante longos dias o único assunto que corria de boca em boca dizia respeito à grande porta na colina. Na missa, o padre Matias adorava pregar que aquela porta era a passagem enviada por Deus para que seu Filho retornasse à vida mundana, visando o que ele gostava de chamar de A Grande Salvação. As beatas adoravam a ideia de um Jesus Cristo renascido retornar para a grande expiação da raça humana, em que todos os seus pecados seriam perdoados. Meu avô achava uma balela. De minha avó só se ouvia o silêncio. As crianças brincavam de tacar pedrinhas na superfÃcie da porta para ver se com a insistência ela se abria, mas se cansaram depois de inúmeras tentativas infrutÃferas. Todos os dias um grupo seleto de pessoas, no qual meu avô se incluiu por livre e espontânea vontade, se dirigia até a porta para verificar se algo havia mudado ou se ela havia sumido, mas podia fazer chuva ou sol, ela continuava lá.
Não me lembro exatamente quantos dias ou semanas se passaram antes que algo de diferente acontecesse. Contudo, me lembro que foi em algum dia da semana, pois eu estava voltando da escola quando comecei a ouvir um novo burburinho correndo solto entre as lÃnguas. Tinha a ver com a porta, eu sabia, porque por mais que eu não parasse para perguntar enquanto voltava para o casarão, eu via todas as pessoas na rua apontando para as colinas e gesticulando piamente. Saà correndo até o fim do vilarejo, curiosa e com a circulação alterada. Quando cheguei até o sopé da colina, muitas pessoas já se juntavam em uma grande massa iluminada fortemente por algo que saÃa da grande porta, agora entreaberta. Eu tive de presumir que estava entreaberta, porque ela emanava uma luz tão intensa e brilhante ao longo de sua altura que quase não dava para ver suas extremidades.
O burburinho se tornara quase uma gritaria. Eu nunca tinha visto o pacato povo daquele vilarejo tão excitado com algo. As crianças corriam em volta da colina para ver se a porta também se abria do lado oposto, mas uma delas me contou que lá ela ainda encontrava-se fechada. Meu avô e meus pais – que haviam retornado da cidade –procuravam por mim entre o desespero das pessoas enquanto eu empurrava algumas delas para poder chegar mais perto. Ali muitos estavam ajoelhados perante o milagre que presenciavam e as beatas rezavam e clamavam aos céus com os braços lançados ao alto enquanto choravam. O padre Matias vomitava palavras tão rapidamente que até Jesus Cristo se assustaria com sua loucura se naquele momento voltasse mesmo para a vida mundana através daquela passagem.
Mas não foi Cristo renascido que saiu dali.
Aquele frenesi descomunal aos poucos deu lugar a um silêncio absoluto quando todos pararam para observar o que acontecia lá na frente. A luminosidade diminuiu quase pela metade conforme a porta foi se abrindo mais e mais. A expectativa era tão grande naquele momento que até mesmo eu senti como se meus batimentos cardÃacos tivessem cessado. Notei que eu levava uma mão ao peito e a outra até a boca entreaberta de surpresa, não conseguindo acreditar no que estava acontecendo. Até cheguei a indagar, hoje me recordo, se não era mesmo algum milagre dos céus que todos estivessem presenciando.
Fosse ou não obra de algum Deus, aquela porta entreaberta deu passagem para duas silhuetas que aos poucos iam se tornando nÃtidas através da luminosidade que diminuÃa. Tudo não durou mais que alguns segundos, mas pra todo mundo pareceu uma eternidade. Eram duas pessoas que saÃram de lá. Duas mulheres. O silêncio foi preenchido novamente pelo burburinho anterior, mas os clamores e rezas foram substituÃdos por um bate-boca generalizado. Quem eram aquelas mulheres? O que queriam? De onde teriam surgido? Eram esses alguns dos questionamentos que surgiram.
As mulheres nos observavam com olhos interessados, como se nos examinassem lá de cima. De súbito tive uma surpresa ainda maior quando percebi que elas eram muito altas, mais altas que uma pessoa comum, pois a porta não era tão grande para elas como parecia para nós. Elas apontaram para nós e trocaram olhares e algumas palavras entre si enquanto todo mundo assistia. Estavam vestidas de uma maneira tão engraçada, pude perceber. Não usavam vestidos, mantas ou vestes comuns, nem calçavam sapatos ou sandálias. Estavam vestidas com uma roupagem bastante clara, de um branco azulado, que percorria o corpo todo como uma peça única que envolvia os pés e as mãos e subia até o tronco, terminando em um aro preto que circundava o pescoço, como um colar. Seus cabelos caiam soltos pelos ombros, mas tinham uma coloração tão estranha que eu não soube definir. Eram de uma cor que eu nunca havia visto com meus próprios olhos; os fios pareciam alternar entre o branco, o azul e o lilás e eram tão intensos que pareciam emanar uma luminosidade própria.
O vilarejo, tão assustado, continuava assistindo à quela cena sem ousar sair do lugar, porque as duas mulheres começaram a conversar. Elas falavam baixo, bem próximas entre si, gesticulando e apontando para nós e para a porta. Uma delas levou a palma de uma das mãos até a superfÃcie da porta, que havia se fechado, e sem nenhuma tentativa de empurrá-la voltou o olhar para a companheira, que parecia estar apreensiva. Novamente lançaram olhares para nós, mas não mais com interesse, mas com temor. A outra começou a observar bem onde estavam, olhando para o horizonte que ia além das pessoas, em direção ao vilarejo e à fazenda. Continuaram apontando, dialogando e gesticulando, até que o padre Matias, cansado daquela pantomima e visivelmente abalado por não se encontrar frente a frente com o seu salvador, resolveu quebrar seu silêncio. De onde eu estava pude ver que as duas mulheres reagiram com cautela com a aproximação do padre, que começou a falar. Ele perguntava quem eram elas e o que queriam, mas elas pareciam não entender. Não falavam nossa lÃngua.
A visão do padre Matias ao lado das duas era no mÃnimo interessante. Ele estava entre os mais altos dos homens do vilarejo, mas sua estatura quase não alcançava o torso daquelas altas e belas mulheres. Eram tão grandes e estranhas que pareciam pertencer a outro mundo. E foi assim que ficaram conhecidas pelo povo do vilarejo durante o tempo em que lá permaneceram. Após descerem do alto daquela colina, aparentemente impossibilitadas de voltar para dentro da porta misteriosa, e não antes de uma grande discussão entre as pessoas que ali estavam, elas se alojaram na fazenda de minha famÃlia. Lembro-me de ver minha avó fazer gestos tentando se comunicar com as duas. Elas pareciam pedir por algum lugar em que pudessem permanecer por um tempo, pois faziam gestos claros de quem come com um talher e de quem dorme. Minha avó, olhando para cima, em direção à suas cabeças e olhos, conseguiu fazer com que entendessem que aquele grande casarão perto da colina pertencia a ela e que lá elas ficariam. As pessoas não desgrudaram a atenção daquelas duas enquanto elas caminhavam, pois seus grandes passos somavam quase três de uma pessoa comum.Â
Não demorou muito para que os curiosos do vilarejo montassem acampamento nos limites da fazenda, pois queriam ver como viviam aquelas mulheres, o que faziam e como se comportavam. Ambas pareciam não se importar, enquanto se alojavam entre as pilhas de feno no nosso celeiro. Todos os dias, uma delas seguia até a imensa porta no topo da colina e realizava o mesmo gesto que vimos no dia de sua chegada: espalmava uma das mãos na superfÃcie da porta sem pressioná-la, e voltava para a fazenda com uma expressão triste no rosto. Eu deduzi que aquilo significava sua tentativa de abrir a passagem de volta para o local de onde vieram, mas as tentativas só se mostravam infrutÃferas.
Nós convivemos com aquelas mulheres durante três exatas semanas. Nesse tempo, eu não perdi a oportunidade de conhecê-las melhor. Eu as observava, maravilhada, enquanto comiam, dormiam e conversavam. Pude reparar que os olhos daquelas duas eram muito diferentes e definitivamente não eram como os nossos, eram grandes e ligeiramente estreitos, a coloração, como a dos cabelos, também era uma que eu não soube reconhecer. Suas fisionomias eram muito parecidas; se passariam por gêmeas se não fosse um traço aqui e outro ali os responsáveis por diferenciar uma da outra. Até hoje me lembro o quão belos eram seus rostos. Nariz esguio, boca pequena. Seus hábitos também eram muito diferentes, apesar de precisarem comer e dormir como nós. Contudo, elas não precisavam tomar banho, não trocavam os trajes estranhos, não exalavam odor algum e pareciam não necessitar de mais do que uma refeição por dia.
Em certa ocasião, após perder o medo inicial que eu sentia em sua presença, tentei me comunicar com elas, porque até então somente minha avó o fazia – a criada não apareceu para trabalhar durante o tempo em que ficaram em nossa casa. Do escritório de meu pai roubei alguns papeis e canetas, materiais estes que elas pareciam conhecer, porque souberam usá-los muito bem. Lembro de ter escrito meu nome em uma folha enquanto apontava para meu próprio peito, pronunciando as sÃlabas pausadamente. Ambas souberam pronunciar e pareciam entender que aquela era eu. Elas repetiram o processo, mas escreveram em uma caligrafia tão fina e simbólica que não pude compreender. E apesar de dizerem seus nomes logo após terem escrito, também não fui capaz de pronunciar. A lÃngua que falavam era tão corrida e sem pausas que o meu ritmo não deu conta de acompanhar. Com certeza eram de outro mundo. Na escola, aprendemos algumas palavras em outros idiomas, mas eu não pude associar o delas com qualquer um que eu soubesse. O que elas falavam não era uma lÃngua que alguém em minha casa também parecia conhecer.
No vilarejo, algumas pessoas deixaram de viver uma vida que girava em torno das mulheres do outro mundo. A rotina no pacato vilarejo retomava o ritmo usual conforme os dias se desdobravam, mas muitos ainda estavam interessados. O padre Matias começou a ministrar missas diárias logo após o surgimento das duas e passou a pregar que elas eram fruto do pecado, enviadas pelo demônio através da boca do inferno. Pelo jeito, A Grande Salvação teria de esperar. Alguns ainda iam até os portões da fazenda perguntar como estavam as mulheres; os mais curiosos faziam perguntas mais diretas, mas todos esses só queriam o seu bem. Elas não fizeram mal algum para a minha famÃlia, e sou convicta de que o perÃodo em que permaneceram na fazenda foi o mais estranhamente agradável que eu pude presenciar enquanto lá vivi. Era tão fascinante observar uma cultura desconhecida através dos comportamentos e ensinamentos dos próprios nativos! Lembro-me de ter desejado que ambas se sentissem do mesmo jeito depois de partirem, mas disso nunca saberei.
Ao final da terceira semana, um último acontecimento serviu para fechar aquele ciclo da vida do vilarejo. Os garotos da escola brincavam ao redor da famosa colina quando viram o reaparecimento daquela intensa luminosidade que havia escapado por entre as folhas da grande porta da primeira vez que ela se abriu. Eles gritaram de emoção e susto e dois ou três foram correndo chamar seus pais, tios e avós para ver que a porta estava aberta novamente. Pude escutar os gritos de dentro do casarão e imediatamente soube que algo estava acontecendo. Vovô correu com minha avó aos calcanhares, querendo mais uma vez presenciar um novo fenômeno fantástico proporcionado por aquela porta. Ao descer as escadas, dei com meus pais olhando um para a cara do outro e também para a minha, como se estivessem se perguntando o que estava acontecendo. Eu não sei em que mundo eles viviam, pois não se surpreendiam com nada. Gesticulei para que me seguissem e também parti para fora da fazenda, em direção à colina.
Quando cheguei, o vilarejo todo já se encontrava ao pé da colina, olhando atentamente para a porta e também para as duas mulheres, que ali chegavam com olhares e sorrisos de alegria. Da passagem iluminada surgiu um homem igualmente alto, vestido com a mesma roupagem clara e uniforme. Seus cabelos curtos eram da mesma coloração estranha que os delas, porém levemente mais claros. Seus olhos sorriram de alegria ao ver a silhueta das duas correndo de encontro a ele. Lembro-me exatamente da emoção que senti ao ver que o cumprimento que eles trocaram era amplamente conhecido por nós: um abraço. Eu não soube dizer se eles eram irmãos, ou pai e filhas ou mesmo mães e filho, porque aparentavam ter a mesma idade e fisionomias, embora a expressão daquela criatura que parecia pertencer ao sexo masculino fosse mais marcante. Juntos eles pareciam tão superiores! Esguios, fortes e maduros. Pareciam completar um ao outro. O homem as conduzia para dentro da passagem sem ao menos olhar para os que ficavam para trás.
Contudo, antes de partir, as duas mulheres se voltaram para mim e minha famÃlia, convidando-nos a se aproximar. Eu não hesitei em escalar a pequena colina, escapando das advertências de meus pais, que quase me seguraram. A única que subiu comigo foi minha avó, que precisou da ajuda de outras pessoas para não escorregar na grama.
Quando chegamos ao topo, pude perceber ainda mais que éramos tão diminutos frente à queles seres! As duas se ajoelharam e reproduziram um gesto que em qualquer lugar deveria significar a mesma coisa: levaram suas mãos até nosso peito, aos nossos corações, e em seguida aos seus próprios. Sua casa, minha casa. E vice-versa. A porta abriu-se um pouco mais e, bem de perto, eu e minha avó tivemos uma visão que até hoje permanece gravada em minha memória como uma fotografia vÃvida e colorida. No outro lado da passagem, um cenário se abriu para nós: logo depois do batente da grande porta, uma clara estrutura se estendia como um curto túnel e depois dele uma paisagem magnÃfica se abria. Pude ver um campo dourado infinito que ia até onde meus olhos não podiam enxergar. Próximo à porta, eu avistei uma espécie de lago perfeitamente circular em meio ao campo, sua superfÃcie inabalável refletia as cores do céu, que me pareceu ser similar à coloração desconhecida dos olhos das mulheres. Bem no meio daquele lago se erguia uma cidade colossal em formato piramidal, de quatro lados, com seus edifÃcios feitos do mesmo material do qual a porta era feita, mas de cores estranhamente distintas. Do que eles eram feitos e pra que serviam eu nunca descobri. Aquele campo dourado, o lago circular e a cidade foram tudo o que eu pude vislumbrar do que eu presumi ser o mundo deles.
Entretanto, próximo ao lago, um grupo de pessoas se reunia. Eram da mesma espécie, claramente, mas se vestiam de forma muito diferente, com tecidos madrepérola que esvoaçavam com graça ao vento. Alguns levavam adereços nas cabeças ou nos braços, mas eu não soube distinguir se eram homens ou mulheres. Eu estava assustada com tudo que via e pude perceber que aqueles seres também estavam. Olhavam para mim e para minha avó como se tivessem observando algo desconhecido e novo, maravilhados assim como estávamos.Â
Eu nunca soube de onde vieram ou como se chamavam. Nem mesmo minha avó ou o padre Matias. Nunca soubemos como viviam, se tinham filhos, pais, irmãos ou avós. Nós também nunca soubemos o motivo daquela grande porta ter aparecido em uma colina no nosso pacato condado.
Durante os demais anos da minha vida, amadureci minhas crenças e valores. Hoje só consigo imaginar e indagar as razões daquela visita superior, daquela permanência em nosso celeiro na antiga fazenda, hoje em ruÃnas. Meus pais e avós já não estão vivos. Eu mesma não me encontro em estado muito diferente. Contudo, aquelas duas mulheres ainda vivem em meu coração, onde me tocaram. Nossa casa pertenceu a elas por três semanas, mas a casa delas foi minha morada por mais cinquenta anos. Nunca me esquecerei de suas fisionomias ou de como soavam suas vozes e seu dialeto. Passei minha vida estudando outras civilizações e culturas, mas nunca me deparei com algo que ao menos se assemelhasse a existência daqueles seres.
Contudo, quando vi aquela porta se fechar e ser consumida pela intensa luminosidade até desaparecer diante de meus olhos, eu soube que seria a última vez que ouviria falar das mulheres do outro mundo, que foram embora pra nunca mais voltar.