Inferno (Armitage #2)
- jeffpavanin

- 25 de mar. de 2022
- 13 min de leitura

Ele desceu da van pouco preocupado com as bagagens que ficaram para trás. O Ray-Ban escuro protegeu seus olhos da forte luz que o sol projetava por toda a extensão da Sunset Boulevard àquela hora do dia, possibilitando a visualização de seu destino. Jamie vinha logo atrás, dando ordens e conversando com as pessoas que se amontoavam do lado de fora da casa de shows. A equipe que a casa tinha providenciado era paga para o serviço de descarrego, ele não teria mesmo porque se preocupar. Preferia dar atenção a alguns fãs que montavam guarda na calçada, distribuindo fotos, rabiscos e meio-sorrisos. Os takes de iPhones coloridos e blocos de anotações eram uma pequena felicidade para Keith em um dia como aquele, pois o lembrava de que alguém no mundo ainda era capaz de amá-lo. Durou pouco, porém, pois Jamie lhe empurrava para dentro do estabelecimento com uma pressa abobalhada de quem está preocupado com tudo. E também, Keith não estava em sua melhor semana e Jamie sabia. Vivia uma nova peça que o destino lhe pegara, fazendo de seus dias um palco para grandes apresentações, mas não para as suas composições tão amadas, e sim para uma grande pantomima. Mentalmente amaldiçoava Jamie por ter lhe conseguido uma temporada de apresentações na Jolly Roger, mas não reclamava, pois a grana que receberia era gorda.
Apesar da grana, Keith não parava de se irritar com algumas pulgas que o namorado havia lhe colocado atrás da orelha. Em Los Angeles, era grande a quantidade de casas noturnas existentes, o que abria um leque enorme de possibilidades para shows e eventos de toda natureza, mas Jamie havia sido bem específico na semana anterior quando disse a Keith que sua próxima temporada de shows incluía a Jolly Roger. Aquela desconfiança barata consumia a mente de Keith que, além de ter de se concentrar para o show daquele dia, se preocupava com cismas desnecessárias. Não sabia dizer o que Jamie tinha em mente ao marcar eventos na casa de shows que Conrad administrava e também não sabia dizer se Conrad lhe pagava bem somente por conveniência, uma vez que vinha realizando tentativas infrutíferas de se redimir com Keith pela traição do ano anterior. Não achava saudável receber um bom cachê por piedade. Queria ganhar o equivalente ao que sua música valia. Todo esse caos se fazia muito presente nos pensamentos de Keith enquanto ele entrava no corredor escuro que levaria ao interior do estabelecimento.
Tirou os óculos e viu Jamie fazer o mesmo quando chegaram à pista principal, ainda deserta. A equipe descarregava os equipamentos no palco, Jamie tirava fotos dos arredores (como se nunca tivessem pisado ali) antes de a aglomeração começar a encher o lugar. Keith nem se deu ao trabalho de olhar para cima, para a sala de Conrad, sabendo que o ex estaria metralhando-o com os olhos através da janela de vidro que os separava. Tentaria evitar ao máximo qualquer contato com Conrad, mas também não queria que Jamie ficasse de conversa com ele. Duas pessoas que desempenhavam papéis importantes em sua vida, tendo funções essenciais para ele, dividindo o mesmo espaço, na mesma hora, era muito pra processar. A situação toda era tão ridícula que Keith sentia vontade de rir, só não possuía a inteligência emocional para expressar a ironia. Gostaria de ter Mia ali consigo, como da última vez, para lhe ajudar a lidar com os problemas mais difíceis e correr atrás de seu prejuízo, mas Mia estava feliz estudando no Canadá, e Keith só tinha a Jamie. Teria que servir. Teria que engolir os sapos de Conrad e os feitos sem justificativa de Jamie, porque discutir não era uma opção.
Sabia que naquela noite todos os amigos de Jamie estariam na platéia; atores de Hollywood, escritores e também celebridades do mundo underground que faziam questão de conhecer o trabalho de Keith de perto, de tanto que Jamie falava e a mídia local disseminava. Também estariam ali produtores que Conrad conhecia; eram alguns caras ricos que moravam em Silver Lake e que buscavam novos artistas para investir. Como se não bastasse, também estavam convidados os jovens que havia conhecido em Laguna Beach no verão passado, dentre eles o ex-namorado de Jamie que Keith ainda não conhecia propriamente. Era mesmo muita informação para sua mente insana processar. Até outro dia estava chorando para um desconhecido dentro de seu próprio apartamento, hoje estaria chorando para toda a sociedade californiana. A lembrança de todas essas pessoas deu a Keith um calafrio nervoso, que foi terminar na base da nuca. Ele passou a mão pelos cabelos e respirou fundo, duas vezes, tentando se livrar daquela já conhecida sensação que se apoderava de seu corpo toda vez que pisava naquele local, hoje praticamente triplicada. Precisava de um copo d’água. Deu passadas pesadas até o outro lado da pista principal, onde portas duplas davam acesso aos camarins tão conhecidos.
Foi com muita estranheza que Keith entrou no velho cômodo e se sentou no sofá vermelho surrado, a única coisa que Conrad não havia mudado nos camarins. Aquele sofá já lhe era conhecido, mas as paredes e os outros móveis já não eram mais os mesmos. Conrad (ou seu sócio, Bruce) havia forrado toda a parede do fundo com imagens em preto e branco de lendas da música e cinema mundial, como um típico clichê que ali cabia muito bem. Deitado, Keith jogou a mochila para um lado e ficou encarando o semblante de uma Marilyn Monroe ainda nova, sem sorriso, muito longe daquela imagem arquetípica da loira de vestes ao vento. Achou que aquela imagem tão simples era capaz de refletir sua própria imagem, só que em um molde feminino e inocente. Decidiu que gostava daquela montagem monocromática. Esse fato lhe trouxe a péssima sensação de estar de acordo com algo feito por Conrad, coisa que ele não queria sentir de jeito nenhum. Muito pelo contrário, estava tentado a odiar Conrad, odiar suas ações e qualquer palavra que saísse de sua boca. Ainda não havia trocado um olhar com ele desde que tudo acontecera e Keith pretendia fazer com que a situação permanecesse assim. Tal ideia lhe pesou o coração e ele fechou os olhos e respirou fundo mais uma vez, tentando não soltar um grito desesperado ou cair ali mesmo em prantos. E foi deitado, sem sapatos, que Jamie o encontrou, dez minutos depois.
“O que está fazendo, lindo?”
Ao som da voz de Jamie, Keith abriu os olhos, mas continuou deitado. Como se soubesse que ele não fosse se levantar jamais, Jamie sentou-se na beirada do sofá e olhou para o namorado com aqueles olhos tão miúdos que só sabiam expressar compaixão.
“Você não vai dormir, vai? Temos que passar o som.”
“Eu sei. Não vou dormir, mas queria.” Foi tudo o que conseguiu dizer.
Jamie era a única pessoa que, em anos, conseguiu desvendar a inexpressividade da face de Keith, que só conseguia rir em momentos muito íntimos. Nem mesmo Conrad foi capaz desse feito em mais de vinte anos de convivência. O fotógrafo ficou observando Keith por vários minutos antes de prosseguir.
“Eu imagino como deve ser difícil pra você estar aqui hoje, Keith. Pra mim também não é fácil. Não quero comparar sua dor à minha, não, mas nós sabemos que ambos precisamos dessa oportunidade. Por um estratagema do destino, seu ex-namorado é ninguém mais que Conrad Clay, que é sócio de um dos maiores produtores americanos. A Jolly Roger não é qualquer casa de shows, você sabe. E você também não é qualquer artista.”
Keith abriu os olhos. Os azuis ficaram observando os verdes por alguns segundos.
“Esse lugar foi como uma casa pra mim. Hoje é um inferno.” Keith respondeu.
“Eu sei, porque abriga o capeta. Mas o capeta é nossa passagem para a Billboard.”
Ele não queria acreditar naquilo. Não queria acreditar porque seria dar razão para o que ele nunca quis admitir. A ideia de que Conrad pudesse ser o pivô de sua trilha para o sucesso era aterrorizante. Seus nomes ficariam marcados pela eternidade em tudo o que diria respeito a sua vida pessoal e também à profissional. Teria que lidar com a presença de Conrad pelo tempo que durasse sua carreira. Ele devia ter deixado seu pânico se extravasar de alguma forma, porque Jamie colocou a mão em seu peito e pediu calma.
“Seu nome só virá vinculado ao do produtor que lançar seu álbum majoritariamente. Até agora você só tem discos quase independentes, Keith. Clay não é nenhum super produtor, se você vier a ficar ligado a alguém da Jolly Roger, será a Bruce e somente a ele. Mas hoje virão alguns homens que têm estúdios em Laurel Canyon e Silver Lake que também podem se interessar pelo seu trabalho. A mídia já te adora, só falta você cair na graça da América. Agora levanta.”
Jamie puxou Keith pelo braço com as duas mãos e ele se deixou levar pela força do fotógrafo, que o pôs de pé no meio do camarim. Sem ao menos dar espaço para que ele pudesse se movimentar, ele puxou Keith para um abraço, retribuído, que foi responsável por finalmente acalmar os ânimos do músico. Era importante pra ele ter quem o amparasse, apesar de preferir ser dono de seus próprios anseios. Não estava acostumado a alguém que lhe entendesse e tentasse lhe animar sem julgar sua atitude insegura.
“Fica tranqüilo”, Jamie sussurrou.
Foram juntos para a pista principal.
Já no palco, Keith passou o som com o restante da banda contratada e ensaiou algumas de suas músicas. Jamie tinha lhe dito que Conrad não havia descido de sua sala em nenhum momento, observando e ouvindo tudo lá de cima, de dentro de sua redoma. Talvez fosse melhor ter Jamie a seu lado e não Mia, que lhe passava memorandos periódicos da situação de Conrad na casa noturna. Agora que estava com Jamie, não precisava saber o que Conrad fazia, desde que permanecesse fora de contato. Em algum momento um encontro seria necessário para que todos recebessem sua parte do dinheiro, mas Jamie já havia dito que ele mesmo se encarregaria dessa tarefa. E era justamente esse o problema, pois Keith não queria ver os dois em um diálogo. Talvez pudesse levar a sorte de receber o cheque diretamente de Bruce, ou até mesmo via depósito em conta corrente. Foi pensando nesse tipo de ladainha que Keith errou um acorde e quebrou a harmonia da música que ensaiava.
“Desculpe”, disse para ninguém em especial.
Só depois de ter acabado com o repertório duas vezes foi que ele percebeu uma pequena movimentação ao fundo da pista. Jamie apontava para ele de longe e quando percebeu que Keith estava olhando, acenou positivamente. Seu gestual sugeria que Keith descesse para encontrar as pessoas com quem conversava, que provavelmente eram os amigos que estava esperando chegar. Keith havia permitido que eles entrassem de graça para os ensaios e ficassem para assistir ao show da noite, mas Jamie o proibiu de oferecer seus talentos de graça, mesmo que para amigos, fazendo com que todos entrassem como qualquer pagante. Cortesias não estavam no repertório, disse ele. Já era mais do que suficiente permitir que eles assistissem aos ensaios. Então Keith tirou a alça da guitarra do ombro e encostou-a em uma caixa de som antes de descer do palco e andar em direção àquelas pessoas. Ele reconheceu os quatro como sendo os conhecidos de Jamie que recebeu em sua suíte no Chateau há cerca de três semanas, sendo um deles o único conhecedor de sua ruína.
Anton, o mais baixo e calado, era o garoto que havia presenciado o momento de fraqueza de Keith naquela noite, quando o pegou em prantos como um bebê. Haviam se falado pouco, mas palavras não foram necessárias para que os dois se entendessem. Keith sabia que Anton e o companheiro não se davam muito bem e, como Jamie já havia dito, só conhecera Anton depois de vários meses de relacionamento entre ele e seu amigo Steve. Keith pensava que ele e o garoto baixo tinham mais em comum do que o restante deles, porque estavam inseridos naquele grupo social somente por conveniência de suas respectivas companhias. Pensando bem, aquelas pessoas só estavam ali por causa dele e essa era a única verdade. Se não houvesse Keith Armitage, o músico, se só existisse Keith, o ser humano, ninguém teria muito interesse em nada do que ele tivesse para oferecer. Nem mesmo Jamie. Talvez somente Conrad. A lembrança repetida de Conrad fez com que ele suspirasse, decepcionado consigo mesmo, antes de tentar abrir um sorriso para cumprimentar os ali presentes.
“Tem uma música nova no repertório?”, perguntou um rapaz loiro. Keith não lembrava seu nome. “Essa última que você tocou. Não a conheço!”
Antes que ele pudesse dizer qualquer palavra, Jamie fez uma coisa que Keith com o tempo aprendeu a gostar: respondeu por ele. Isso evita desperdício de voz e energia.
“Se você prestasse atenção nos álbuns que eu te dei, saberia dizer qual música é.”
E assim seguiram os elogios e críticas positivas generalizadas. Diziam que o repertório era ótimo, que Keith evoluiu bastante de uns tempos pra cá, que sua música tinha uma atmosfera única e bem envolvente, ainda que não soasse agitada. No fundo, Keith achava que eles faziam de tudo para não dizer que suas músicas davam sono. Somente Anton não disse uma palavra para descrever seu talento. Permanecia calado e observando as pessoas e a Jolly Roger de forma geral. Keith percebeu que por um momento ele lançou seu olhar para a janela de vidro lá em cima, mas não demorou meio segundo para desviar sua atenção novamente para baixo. Conrad deveria ter saído da janela. Essa ideia o aterrorizou, porque, por mais que não quisesse olhar para cima também, a ideia de que o traidor permanecia lá parado era reconfortante, pois ele sabia que para lá era o único lugar que não deveria olhar. Permitiu-se respirar fundo mais uma vez, mas não soube como reagir quando seu coração veio à boca num repente. Conrad descia as escadas que levavam a um anexo contíguo à pista principal e vinha em direção a eles. Jamie pareceu ter percebido seu descontrole quase imperceptível, pois pegou na mão de Keith rapidamente, continuando a conversa trivial.
“Veja se não é Conrad Clay”, disse o loiro sem nome.
Keith queria sair correndo. Até aquele momento, desde meados do ano anterior, um encontro com Conrad era somente uma ideia, não um fato consumado. Embora soubesse que eventualmente trombaria com sua cara mal lavada, nunca havia imaginado o momento em que trocariam olhares novamente. Agora, estava acontecendo. Ele vinha vestindo calça jeans e uma camisa xadrez vermelha aberta no pescoço, que deixava a mostra um pedaço de seu peito, completamente cativante. Ele abriu aquele sorriso branco e cumprimentou todo mundo de forma geral, evitando contato direto com cada um deles, fato este que conseguiu acalmar o ânimo de Keith, que permanecia inexpressivo. Jamie apertou forte sua mão e nenhum dos dois abriu a boca, deixando que os outros falassem por eles.
“É bom ter vocês na Jolly”, comentou Conrad. “Se precisarem de alguma coisa é só pedir.”
“Onde está Bruce?”, Steve perguntou.
“Foi resolver problemas pessoais, mas deve aparecer por aqui mais tarde.” Ele parecia não notar a presença de Keith ou Jamie, pois continuava a se dirigir somente aos outros. “Estão animados para o show de hoje?”
“Bastante!”, respondeu um deles. “Keith estava sensacional no palco agora.”
E então seus olhares se cruzaram. Durou menos de um segundo. Conrad ainda sustentava seu sorriso e passou os olhos de Keith a Jaime rapidamente antes de voltar sua atenção para o rapaz que havia falado. Ele assentiu.
“Que bom. Hoje vamos lotar a casa. Todos os ingressos foram vendidos.”
Um burburinho de surpresa preencheu o ar do grupo.
“Preciso voltar ao trabalho. Muita coisa para organizar.” E se virou para falar com eles. Keith não soube dizer a quem ele se dirigia, se era a ele ou a Jamie. “Se precisarem de algo no camarim, podem me avisar. Hoje a noite é de vocês.”
Pediu licença e se retirou. A coisa toda tinha durado menos de dois minutos, mas Keith sentiu como sendo os dois minutos mais demorados de sua vida até então. Jamie não se importou em não pedir licença aos amigos e puxou Keith até a beirada do palco, como se fossem discutir alguma coisa relacionada ao show. Ele parecia abatido. Não soltou da mão de Keith em nenhum momento, mas suspirou e passou os dedos da outra pelos olhos, como se tentasse se livrar de uma sonolência.
“Nossa, me desculpe”, ele disse. “Achei que eu ia conseguir lidar com isso, que nós conseguiríamos lidar com isso, mas estar agora na frente daquele canalha me fez tremer de raiva. Porra, Keith, me desculpe por te colocar nessa situação.”
Jamie era mesmo uma ótima pessoa.
“Calma. Já passou...”, ele conseguiu dizer. “Foi mesmo uma merda.”
“Foi. Nós não precisamos fazer isso se você não quiser. Posso pedir pra empacotar tudo e a gente remarca o show em outro lugar. Posso ligar pra alguém, ver se consigo agendar o Fancy Candice pra amanhã. Dizem que estão com a agenda cheia, mas a gente toca até na rua se for preciso...”
Keith colocou a mão no peito de Jamie, como quem pede calma, calando-o.
“Bobo, escuta, pelo menos uma frase que saiu pela boca do diabo serviu pra alguma coisa. Compraram todos os ingressos, Jamie. Não podemos cancelar. Você conhece os prejuízos de uma coisa como essa, um cancelamento iminente. Não só ele sairia prejudicado.”
“Mas, Keith-“
“Não tem ‘mas’. Eu vou tocar hoje. Eu quero tocar. Esse encontro me fez perceber que eu não quero deixar de viver minha música por causa dele. Isso já abala minha vida pessoal o suficiente. Não posso deixar que abale a profissional também.”
“Mas lá no camarim...”
“Lá no camarim eu estava pensativo, sim. É uma merda ter que pisar aqui depois de tudo o que vivi. Odeio Conrad e odeio tudo o que ele fez ou deixou de fazer. Mas não tenho como odiar o que construímos até agora, eu e você. Não é hoje que isso acaba.”
Jamie não respondeu de imediato. Olhava para o chão, pensando no que estava ouvindo.
“Tudo bem. Poxa, quem diria, hem? Você, trocando de papel comigo. Geralmente eu é que te encorajo em tudo. Agora você me convence a ficar. Parabéns.”
Ele riu. De verdade.
“Você sabe que sou instável, Jamie. Agora vá ficar com seus amigos animados. Vou passar a setlist mais uma vez. Vai me acalmar e eles vão gostar, eu acho.”
E Jamie foi. Continuou tirando fotos de Keith enquanto ele passava o som, fotos que um dia sairiam em um livro escrito em sua homenagem. Tocou seus acordes sem desafinar dessa vez, prestando atenção nas notas e na letra que cantava ao mesmo tempo. Era engraçado, mas, depois que Conrad tinha virado as costas, tinha levado consigo algum peso que já não pertencia mais a Keith. O fantasma do encontro com o traidor sempre fora algo tão temido por ele que ele não suportava a ideia de que um dia viesse a acontecer. Agora que tinha acontecido, de uma forma tão rápida e banal, conseguia sentir-se melhor. Era como se o fantasma tivesse sido exorcizado ou algo desse tipo. O monstro que ele pintara de Conrad havia tinha se revelado um pequeno gato inofensivo e incapaz de acabar com suas realizações, assim como tinha pensado até meia hora atrás.
O show todo aconteceu da melhor maneira possível. O músico foi ovacionado pelos críticos, que compareceram em peso, conforme Jamie havia lhe alertado antes. Muita gente tinha a maioria das letras na ponta da língua e o alto coro que se formou surtiu efeito positivo em Keith, que não cabia dentro de si de tanta emoção. Isso era algo positivo. Estava tão acostumado a viver com sombras de frustrações e inseguranças durante boa parte de sua vida que tinha se esquecido de como é sentir algo realmente bom. Seus últimos shows não tinham sido lá muito proveitosos, talvez devido a muitos obstáculos que ele impunha a si mesmo. Dessa vez conseguiu aproveitar cada minuto. Nem a sensação da fumaça do cigarro lhe descendo pela garganta foi tão boa como a de completude que se fizera presente em meio a algumas canções. Ao término do show, quando abriu seu primeiro sorriso involuntário em anos, não pôde controlar o impulso de olhar para cima, para a janela de vidro, e ver Conrad lhe sorrir de volta.
O diabo tinha as presas mais dóceis de todo o Inferno.


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