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Corolário

  • Foto do escritor: jeffpavanin
    jeffpavanin
  • há 5 dias
  • 25 min de leitura

Palavras-chave: Conto, Ficção Científica, LGBT.

Contém descrições gráficas e nudez, não recomendado para menores.


O barulho das sirenes invadia os tímpanos de Hans e servia como um verdadeiro estímulo para que ele continuasse correndo. As ruas estavam abarrotadas de transeuntes que aparentemente não tinham mais nada a fazer se não atrapalhar sua fuga. As lojas naquele dia ficariam abertas até tarde devido ao número crescente do consumo de Beta Kai no continente, o que dificultava ainda mais a vida de Hans, que empurrava para longe de seu caminho todo e qualquer indivíduo que aparecesse na sua frente. Uma simples olhadela para as luzes da milícia por cima do ombro foi o suficiente para fazer com que a corrida se intensificasse ainda mais, dando a Hans a péssima sensação de que sua musculatura pudesse ruir em fadiga a qualquer momento. Pensando nisso, foi com grande alívio que ele avistou ao longe a grande lavanderia na esquina do beco em que ele deveria virar. Ficou tão feliz em ver aquele letreiro piscar que se permitiu soltar um rápido gritinho de satisfação. Reunindo forças para vencer mais aquele pedaço de quarteirão até a esquina do beco, fez com que uma quantidade significativa de sua energia corporal fluísse de sua mente diretamente para seus membros inferiores, produzindo um relaxamento imediato. Só faltava mais um pouquinho.

Quando ele virou a esquina, finalmente, o breu tomou conta de seus olhos fazendo com que nenhuma fagulha de luz iluminasse o beco, ainda que o letreiro da lavanderia estivesse piscando com cores intensas. O Beco Branco não era famoso pelo seu nome. Estava envolto por uma força estranha que poucos realmente conheciam e sabiam dominar, surgida no mundo após a tomada da Terra pelos telurianos. Por sorte, Hans conhecia um dos poucos homens capazes de controlar o Breu e moldá-lo para fins próprios. Já estando familiarizado com aquele beco, apesar de não visitá-lo há algum tempo, Hans concentrou-se e começou a contar os passos até uma porta que ele sabia que encontraria logo à frente. Eram 32 passos para frente e mais 11 para a direita até encontrar a base de uma pequena escada de pedra, que ele não podia enxergar, obviamente, e a qual subiu até deparar-se com uma porta já conhecida. Embora se encontrasse fora do alcance visual da milícia, nunca poderia duvidar do poder intuitivo dos telurianos, por isso foi com pressa frenética que ele começou a bater naquela porta.

Lá de dentro veio um grito abafado e irritado com a pressa de quem batia, seguido por ruídos de metal caindo no chão. Passos pesados seguiram até a porta, do lado de dentro, onde uma voz masculina pôde ser ouvida perguntando:

“Quem é que bate?”

“Lars, sou eu, Hans. Abra a porta pra mim. Rápido.”

O homem do lado de dentro soltou um muxoxo de descontentamento.

“Que cacete, porque eu deveria abrir a porta pra você? Vaza daqui.”

“Cara, é sério. A milícia tá me perseguindo. Me ajuda com essa e eu fico te devendo.”

Lars, o homem que estava do lado de lá, não parecia nem um pouco satisfeito, pois deu um soco forte na porta antes de continuar seu discurso.

“Hans, seu filho da puta, você já me fodeu nessa vida nos vários níveis de compreensão dessa palavra e eu não quero saber se você está com a milícia no seu encalço. Vá você se foder e saia de perto da minha casa.”

“Não, Lars, por favor. Você não compreende. Se me pegarem eu não vou pra cadeira, cara. Eu vou ser morto ou sei lá o que podem fazer comigo. Eu juro que não entendo, mas posso te explicar se você me deixar entrar. Sério, eu prometo que dessa vez eu não roubei nada, cara. Eu tô limpo.”

O silêncio do outro homem dizia que ele estava pensando no caso.

“Você tá fugindo da milícia terráquea ou teluriana?”, perguntou.

“Teluriana, Lars! Agora me deixa entrar!”

Um retângulo de luz se cortou em meio à escuridão do Breu quando Lars resolveu abrir a porta. Apesar de o cômodo do outro lado estar bem iluminado, nenhuma partícula de luz iluminava o beco lá fora, de forma que Hans também não podia ser visto pelo lado de dentro. O olhar do homem repousava em algum lugar em meio ao Breu, à espera de Hans, que não demorou para transpassar o batente e entrar no pequeno apartamento. Quando Hans se tornou visível para o amigo, caiu de quatro no chão de taco e vomitou uma substância vermelha e pegajosa. O aspecto físico de Hans, somado à visão daquela gosma vertida, foi o suficiente para fazer Lars soltar uma expressão de surpresa e esquecer por um momento todos os problemas passados que pudessem ter. Lars apoiou o amigo em seus ombros e conduziu-o até sua sala improvisada, que não tinha mais do que um sofá, uma poltrona e um antigo transmissor que costumavam chamar de televisão. O transmissor estava desligado. Hans encostou-se no estofado e respirou profundamente antes de falar qualquer coisa, porque seu cérebro estava jorrando informações em todas suas terminações nervosas. Demorou alguns minutos até que pudesse realmente abrir os olhos e falar, mas foi interrompido por Lars.

“Você parece um trapo. Não me venha dizer que virou fã de Beta Kai.”

Hans balançou a cabeça em negativa, na medida em que podia.

“Não. Isso não é Beta Kai e nem nenhuma outra substância. Lars, eu tô doente. Não sei como e nem porque, mas eu fiquei doente. Essa porra é uma desgraça, cara. Ah, meu Deus.”

“Deus não existe, meu amigo. Agora me explica isso direito. Doente?”

“Sim... Há uns dois meses eu comecei a sentir uma dor de cabeça insuportável, cara. Fui até a um centro teluriano pra ver se algum deles sabia me dizer o que acontecia, já que os hospitais foram extintos. Eu pensava que a dieta básica ia suprimir todas as doenças conhecidas, como eles prometem.”

“Realmente, uma simples dor de cabeça deveria ser suprimida com a dieta teluriana. Há quem não sinta uma dessas há muitos anos, Hans.”

“Só que a coisa piorou”, continuou ele. “Um dos curandeiros deles disse que era muito estranho o fato de eu estar sentindo dores de cabeça, e reportou o caso para um superior. Eu fiquei preso naquele centro durante cinco horas, Lars. Os malditos cabeças-largas me fizeram de refém em uma sala estranha pra caralho, fizeram testes em mim, os testes mais malucos, pra saber o que eu tinha. Eu saí de lá com mil comprimidos pra engolir e um soro azul daqueles que deixam a gente retardado. Você sabe.”

“E você tomou? Diz que não.”

“É claro que eu não tomei. Meu pai não confiava nos cabeças-largas e eu também não confio. E, se te conheço bem, você também não. Só que a coisa piorou, como eu disse, e eu comecei a vomitar essa bosta vermelha. Dói pra cacete e me come as entranhas. Mas eu reparei em certas melhorias em minha vida, Lars. Eu pude perceber que eu fiquei consciente de diversas coisas. No começo eu pude jurar que tinha conseguido virar a página de um livro só pensando nisso, e de repente a página estava lá, virando-se na minha frente, como se uma mão invisível estivesse fazendo o serviço por mim. Sério, Lars, não foi o vento. Enfim. Acontece que de duas semanas pra cá eu comecei a saber... Eu simplesmente sei que consigo redirecionar a energia do meu corpo para membros específicos. Eu consigo fazer isso, Lars.”

A expressão do amigo era difícil de decifrar. Ao mesmo tempo em que parecia absorto em pensamentos, Lars apresentava uma seriedade quase nunca vista naquelas rugas frisadas.

“Calma. Muita informação. Você tá me dizendo que pode fazer o que fazem os telurianos?”

“Sim, Lars. Ah, meu Deus. Eu to me tornando um maldito cabeça-larga? Porra!”

“Sua cabeça ainda parece bem normal pra mim, Hans. Para de inventar. Agora, pelo que você tá me falando, você desenvolveu habilidades psicossensoriais. Isso é absolutamente impossível. Só os telurianos têm essas capacidades mentais de abrir portas e se comunicar com a força mental sem um comunicador móvel, dentre outras coisas. Um ser humano terráqueo, como nós, não tem capacidades cognitivas para desenvolver tais habilidades, muito menos um córtex elástico o suficiente.”

“Isso pra mim é grego, Lars. Esquece seus estudos acadêmicos por um momentinho e me diz, que porra está acontecendo comigo?”

“É por isso que você correu pro meu apartamento, não é? Viu em mim uma esperança de melhora. Acontece que eu não sei o que é isso e nunca me deparei com algo assim". Lars se sentou ao lado do amigo no sofá e olhou bem para aquele rosto marcado por olheiras antes de prosseguir. “Você jura pra mim, com todas as forças, que não está sob efeito da Beta Kai?”

Hans, cansado da desconfiança que as pessoas tinham dele, principalmente Lars, reuniu as forças que conseguiu, mesmo sem precisar direcionar sua energia para as pernas, e se levantou quase num pulo, afrouxando o cinto e abaixando as calças num repente. As roupas de baixo desceram com seu polegar, revelando o órgão genital de Hans que, apesar de avantajado, estava como deveria estar: flácido. Antes que Lars pudesse dizer qualquer coisa, ele tornou a subir suas roupas e sentou-se novamente.

“Você até parece duvidar de mim só pra ver meu pau”, exclamou.

A Beta Kai era uma substância alucinógena e afrodisíaca que havia se tornado muito consumida nos últimos anos devido à propriedade que tinha em elevar a consciência do usuário a um estado fantasioso e coletivo. Era como se quem usasse fosse transportado para um mundo paralelo onde todo usuário podia fazer e ser quem bem entendesse e ainda podia se encontrar com outros usuários do mundo. Um dos efeitos colaterais mais comuns da Beta Kai era a excitação genital. Em alguns estabelecimentos, inclusive, a droga era utilizada para fins sexuais. Era livremente comercializada e podia ser encontrada em qualquer lugar, pois não era uma substância ilegal, uma vez que foi trazida e implantada na Terra pelos telurianos logo que o planeta foi tomado. Hans já havia feito o uso da droga, assim como Lars, mas só para ambos descobrirem que Beta Kai não era um mundo no qual eles gostariam de viver.

“Seu pau não é nada que eu já não tenha visto.”

Dito isso, Lars se levantou pegando seu comunicador móvel, um Guda2, um dos comunicadores mentais mais antigos daquela tecnologia. O objeto transparente projetava uma imagem holográfica, quadrada e plana, a 1 centímetro de sua superfície, dando a Lars a capacidade de se guiar mentalmente pelas telas e inúmeras outras projeções disponíveis no comunicador. Essa também era uma capacidade telúrica, mas que havia sido implantada e permitida aos humanos da Terra pelos seus dominadores, assim como a Beta Kai e outras inovações que, de alguma forma, servem para melhorar a vida humana. Ou assim todos pensavam. Lars conectou-se à rede básica global e procurou contatar um rosto familiar, de um homem que havia conhecido alguns anos antes. Ele tomou o cuidado de fazer com que Hans não visualizasse o que fazia com o Guda2, caso contrário poderia questionar suas intenções.

Contudo, logo o faria de qualquer forma.

O comunicador piscou em uma projeção esverdeada diversas vezes antes de conseguir estabelecer uma ligação com o comunicador do outro homem. Um rosto apareceu na tela flutuante. Aquele rosto não era completamente humano, Lars sabia. Hemok era um teluriano e, como qualquer teluriano vivente no planeta, possuía traços semelhantes aos dos humanos, porém com algumas diferenças: os olhos eram ligeiramente maiores, de colorações distintas das conhecidas por um humano comum, além de narizes mais finos e lábios proeminentes. Porém, a principal característica que os diferenciava da raça nativa da Terra era a cabeça, pois a dos telurianos era visivelmente mais larga nas laterais – fato este que era responsável por apelidar a raça alienígena daquela forma tão pejorativa a que Hans se referiu mais cedo. Se Hemok pareceu surpreso com a ligação de Lars, não demonstrou, pois levantou a mão esquerda em saudação. A tela holográfica passou a informação para Lars, que a retribuiu prontamente.

“Saudações, Lars Garrett”, disse ele. A voz era grave. “A que devo a honra?”

Antes de responder em voz alta, Lars foi até outro cômodo do apartamento a fim de evitar que a conversa fosse ouvida pelo amigo que agonizava de cansaço no sofá. Ele sabia que Hans podia se sentir acomodado em sua casa, uma vez que já o fizera inúmeras vezes no passado.

“Olá, Hemok. Desculpe ligar assim sem aviso, mas é que eu estou em meio a uma situação que pede seu auxílio. Você já ouviu falar de algum caso em que humanos são capazes de dominar habilidades próprias dos telurianos?”

A pergunta ficou no ar. Hemok precisou pensar por alguns segundos antes de responder.

“Bem, somente as habilidades que minha raça transmitiu aos humanos durante o Domínio. Isso é História Básica, Lars. Os novos meios de comunicação, a capacidade de transmitir a consciência ao estado Beta Kai, os automóveis teleguiados, essas coisas que qualquer criança sabe.”

O teluriano pareceu soltar uma risada debochada que Lars ignorou.

“Eu sei. Digo sobre habilidades psicossensoriais como o deslocamento de energia. É difícil de explicar...” E então se lembrou do estado físico de Hans, da substância vermelha que ele expelia, de sua doença estranha. “Sua ajuda seria de grande importância, Hemok. Será que você pode passar aqui em casa? Assim poderemos conversar melhor. Se não me parecesse tão importante eu não te perturbaria no seu trabalho.”

Dessa vez o teluriano esboçou real surpresa em sua face alienígena. Não era da natureza de Lars se preocupar com assuntos triviais, uma vez que o humano já tinha questões acadêmicas o suficiente para dominar-lhe a mente por completo. Lars e o teluriano haviam se conhecido em uma conferência social há cerca de quatro anos e haviam mantido a inusitada amizade após o evento. Também não era da natureza de Lars manter amizades com indivíduos dessa raça, mas achava que Hemok poderia ser diferente. Eles compartilhavam ideias semelhantes sobre diversos assuntos e, pra completar, Hemok não parecia em nada com a maioria dos telurianos que ele já tivera o desprazer de conhecer. Ele confirmou isso mais uma vez no exato momento em que parou o que estava fazendo e concordou em visitá-lo.

“Certo. Passarei em sua casa daqui algum tempo.”

“Obrigado, Hemok. Agradeço desde já a sua ajuda.”

O teluriano o saudou mais uma vez antes de desligar. Lars sabia que Hans não ficaria feliz em estar na presença de Hemok, por desgostar da raça com determinação. Encontrou o amigo ainda sentado no sofá, mas preocupado em visualizar projeções em seu próprio comunicador, um Holo4, modelo bem mais atualizado que o de Lars. Ele acessava ilegalmente relatórios da milícia a procura de informações substanciais a respeito de sua fuga. Lars aproveitou a distração para preparar alguma coisa para eles e Hemok comerem assim que estivessem conversando. Era engraçado, pensava Lars, como depois de tanto tempo ainda conseguia olhar para Hans sem raiva genuína, nutrindo sentimentos bons em relação àquele que esteve ao seu lado durante muitos anos. Não era fácil, entretanto, sustentar uma relação copiosa com o amigo, pois não tinha muita paciência para os hábitos e manias que Hans adquirira após entrar em diversas encrencas com a milícia. Ainda assim era curioso pensar em como dessa vez ele não tinha culpa alguma. Nenhuma autoridade persegue um civil por ele estar doente, a não ser que seja questão de segurança nacional e, ainda que o fosse, essa função não cabia à milícia e sim ao departamento de saúde pública. Levou até a sala uma bandeja contendo três copos de cevada fresca e um prato com fatias de carne crua de Yute, uma ave teluriana. Era uma especiaria.

Hans percebeu a presença de um copo a mais na bandeja e antes que pudesse perguntar qualquer coisa sobre isso, Lars se prontificou em explicar.

“Chamei um amigo pra te examinar. Ele não deve demorar.”

“Ah, obrigado, cara. Muito prestativo.” Hans olhou de relance para os olhos do outro antes de desviá-lo novamente para a projeção do Holo4.

“Mas tenho que te avisar algo, Hans. Não importa o que meu amigo é ou deixa de ser, eu quero que acredite em suas palavras. Ele é muito sábio e certamente tem mais propriedade pra falar sobre esses assuntos do que eu. Você está doente e as pessoas estão te perseguindo pela cidade sem ao menos uma explicação plausível. Eu acredito em Hemok e quero que você acredite nele também.”

A menção do nome teluriano fez com que Hans se sobressaltasse no assento.

“Filho da puta. Você chamou um maldito cabeça-larga! Como é que eu vou falar mal de cabeças-largas se você tem um deles bem aqui no meio da sua sala?! Que ridículo, Lars. Eu vou embora.” E ameaçou se levantar, mas não teve forças o suficiente para dar o primeiro passo, caindo novamente no sofá, exausto. “Desgraçado. Não tenho forças nem pra me levantar.”

“Isso é porque você fez algo que um ser humano não deveria. Deslocar energia corporal para outros membros gera um desgaste mental, Hans. Isso eu sei dizer porque já estudei algumas propriedades telurianas quando aprendi a dominar o Breu, anos atrás. Eu mesmo só por saber moldar o Breu tenho desgastes mentais significativos, mas que não são suficientes para causar algum tipo de doença como essa ou qualquer outro problema físico grave. Você fica sentado aí e espera Hemok chegar. Ele vai poder te ajudar. Ele não é um teluriano qualquer, acredite.”

Hans soltou um muxoxo de insatisfação e fez uma careta.

“Você ainda vai simpatizar com esse povo, Lars. Anote isso. Você ainda vai se casar com uma teluriana meia boca e gerar filhos azuis que vão viver correndo pelo seu apartamentinho medíocre aqui no Beco Branco. Vê se cresce, Lars! Telurianos são invasores. Tomaram o seu planeta, criaram novas leis e distribuíram a maneira deles de viver em coletividade. Não se esqueça de seus tão preciosos e velhos costumes, meu amigo. Você ainda tem uma televisão na sua casa. Uma televisão! Esses objetos são tão obsoletos, mas ainda têm seu valor sentimental. Eu sei que você guarda inúmeros discos de memórias de seus pais e avós na época em que a Terra ainda era humana. Você os reproduz em um DVD player, cara.”

Lars olhou para o transmissor desligado e piscou uma vez. O que Hans dizia era verdade, ele tinha de fato armazenado inúmeros discos compactos de informações antigas – vídeos, áudios, imagens – que lhe transportavam para um passado nostálgico e de boas memórias. O fato era que nem ele e nem ninguém deveria viver preso a um passado tão distante cronologicamente, mas sim estar preparado para enfrentar as adversidades que o futuro eventualmente traz. Não que ele tivesse que viver imerso nas ilusões coletivas da Beta Kai, mas ainda poderia escolher quais aspectos novos e diferentes deveria implantar em sua vida pessoal. Foi pensando nisso que desviou os olhos do antigo transmissor e voltou sua atenção novamente a Hans.

“Eu não simpatizo com todos os telurianos, Hans, muito menos com os do sexo feminino. Se eu tivesse que me casar com alguém, não seria com eles, você sabe. E também não preciso ficar te dando satisfações da minha vida, seu animal. O que eu faço ou deixo de fazer nunca foi problema seu e não será hoje. Agora, se você quer que eu te ajude de verdade, fique quieto e deixe que Hemok te examine. Dentre nós, ele é o único que tem chances de descobrir o que se passa com essa sua pança.”

Antes que Hans pudesse retrucar, uma batida ritmada na porta fez com que os dois se olhassem. Lars levantou o dedo indicador em direção ao amigo para silenciar qualquer palavra que ele tivesse pensando em dizer, foi até a porta e, casualmente, começou a retrucar como se nada de incomum estivesse acontecendo ali. A milícia teluriana poderia bater nas portas de todos os apartamentos das redondezas onde Hans foi visto pela última vez, e o Breu que camuflava o Beco Branco não serviria como impedimento para nenhum teluriano. Mesmo que tivessem esperando a chegada de Hemok, abrir a porta não era vantajoso em nenhum sentido, pois, além de dar a oportunidade para qualquer inimigo entrar, o Breu impediria que visualizassem quem os estava esperando do lado de fora.

“Quem é que bate?”, perguntou Lars, assim como tinha feito com Hans pouco antes.

“Hemok, Sr. Garret. Você espera pela minha presença, eu presumo.”

A voz do teluriano era inconfundível e ouvi-la invés da voz de qualquer oficial da milícia trouxe a Lars grande alívio. Contudo, a expressão de Hans ainda permanecia apreensiva, só havia adquirido mais uma ruga de insatisfação. Achava que aquele encontro não tinha nada para dar certo, mas se podiam confiar em alguma pessoa naquele planeta, essa pessoa era Lars. Pensando nisso, ele observou o amigo abrir a porta para a escuridão e receber em sua casa um teluriano. Hemok era tudo o que Hans esperava: alto, longo e completamente estranho. Suas feições levavam os traços que definiriam qualquer outro teluriano na face da Terra, apenas diferenciando-se em proporções e ângulos, que dava ao alienígena uma expressão única e pessoal. Era uma cabeça mais alto que os dois homens e vestia uma roupagem típica dos humanos: calças largas e um paletó azul escuro. Trazia consigo uma maleta preta. Ele deu um abraço amigável em Lars e se fez confortável, acomodando-se no sofá bem ao lado de Hans. Hemok ofereceu sua mão direita a ele em um cumprimento claramente humano, mas Hans a recusou sem pensar duas vezes.

“Desculpe os modos do meu amigo, Hemok. Ele não é muito sociável.”

“Eu seria sociável se ele não fosse um cabeça-larga”, retrucou Hans, ofensivo, sem se preocupar com a presença do teluriano, que abriu um sorriso ao ouvir o insulto.

“Ah. Então o senhor é desses”, começou Hemok. “Tudo bem, eu entendo. Lido com pessoas do seu tipo todos os dias no meu ramo. Acho que podemos nos entender.”

Ele nem se deu o trabalho de responder. Lançou um olhar reprovador a Lars, que o ignorou.

“Hemok, desculpe atrapalhar seu dia assim, sem aviso. Mas se você olhar pro meu amigo resmungão aqui, verá que ele não se encontra em bom estado.” E então apontou para a substância gosmenta e vermelha que secava no carpete. “Vomitou isso daí depois que chegou aqui em casa exausto por fugir da milícia teluriana.”

“Fugir da milícia?” Hemok olhou para Hans com outros olhos. “O senhor é um criminoso.”

Hans não cabia em si de tanta raiva. Tentou se levantar, mas caiu sentado no sofá com o peso do corpo mais uma vez. Pensou que, se ainda não estivesse tão fraco, poderia ter partido para violência ali mesmo. Então disse:

“Se eu não estivesse tão fraco, ia socar a sua cara agora.”

“Ok, pare de ser um idiota”, disse Lars. “Acho melhor você contar pra ele toda a historinha mágica que você me contou, sem pular detalhes e tomando cuidado com os insultos.”

Tudo o que Hans conseguia sentir era profundo arrependimento por ter buscado ajuda do amigo, uma vez que ele mesmo já havia se arriscado o suficiente indo em um centro teluriano. Que babaca eu sou, pensou ele. Sentia-se como um lixo, inútil, sem a capacidade mínima de poder se levantar pra sair dali e manter sua dignidade. Olhou com nojo para aquela gosma que havia vertido, respirou profundamente e deliberou por um instante. Uma simples conversa não iria matá-lo, mas aquela doença desconhecida poderia, se não encontrasse logo uma solução. Foi assim que resolveu escutar o conselho de Lars e, com relutância, contar para Hemok toda a história, adicionando alguns detalhes que não tinha compartilhado com o amigo antes, na hora do desespero. O teluriano escutou tudo sem interromper, mantendo a calma e sustentando um olhar profundamente compreensível, que de certa forma o tranquilizou. Admitir isso fez Hans se sentir envergonhado por um segundo.

Quando terminou, Hemok demorou a desviar sua atenção de Hans para Lars, que retribuiu o olhar questionador, como se esperasse uma resposta do teluriano. A cevada e as fatias de carne permaneciam na bandeja, intocadas. Os homens sabiam que aquele assunto era delicado, mas a seriedade dele só se fez mais presente quando Hemok deixou de responder e passou as mãos pelo rosto, preocupado. Antes que pudesse falar qualquer coisa, abriu a maleta preta e tirou de lá um estetoscópio simples, como os que os médicos humanos usavam em clínicas e hospitais. Para Hans, a ironia da cena era gritante.

“Preciso que o senhor tire a camisa”, pediu Hemok. “É só um simples exame.”

Hans hesitou, mas Lars virou os olhos pro céu, cansado daquela desconfiança.

“Se você não tirar eu vou aí e tiro à força.” E Lars falava sério.

Então Hans suspirou e fez o que lhe era pedido, retirando a camiseta escura por cima da cabeça e colocando-a no braço do sofá. Lars não pôde deixar de lançar olhares discretos pro torso do amigo, que apresentava uma musculatura definida e uma camada de pêlos escuros. Tinha que admitir que, apesar de estar na beira dos quarenta anos, Hans possuía uma disposição física ótima e melhor que a sua própria. Por um momento, sua mente vagou para anos atrás -, para a época em que eles podiam trocar mais do que insultos e olhares tortos -, mas não quis prosseguir com o pensamento, pois o amigo que tinha agora estava debilitado e fraco, o que fazia com que a situação pedisse seriedade de sua parte. Observou Hemok dedilhar a garganta e manusear o estetoscópio pelo peito de Hans, sentindo, com aqueles dedos finos e alongados, se realmente algo estava errado. Terminado o exame, ele guardou o instrumento de volta na mala e pediu que ele se vestisse novamente.

“Fisicamente, você só apresenta sintomas clássicos de fadiga e exaustão. Agora, se você foi realmente capaz de fazer o que me disse, o desgaste mental é absurdamente grande. Fico surpreso em saber que você não tenha desmaiado e ainda esteja falando normalmente. E isso vem ocorrendo há meses, certo?”

“Certo. Mas o vômito com sangue começou recentemente.”

“Eu suspeitei.” Hemok exibia um olhar surpreso e parecia cansado. Suspirou mais uma vez antes de prosseguir, como se decidisse sobre o que falar a seguir. “No telefone você me perguntou se eu sabia de um caso parecido com esse. Eu menti. Há exatamente trinta e seis anos, um caso como esse foi registrado em um centro médico na Suíça. Um garoto de onze anos chegou ao centro reclamando de dores de cabeça e ele também parecia bem tomado pela fadiga. Quando os psicólogos foram investigar, descobriram que o garoto tinha passado por algumas provações em casa, com o pai violento e a mãe doente. O garoto contou que era capaz de criar um isolamento acústico em seu quarto, abafando os sons das brigas dos pais. Ninguém sabia como isso era possível. Nós, telurianos, somos capazes de criar certos tipos de isolamentos como esse, mas estudamos para isso e somos desenvolvidos fisiologicamente para aguentar a carga de energia que é necessária. Um garoto nessa idade, e ainda por cima humano, não deveria ser capaz de desenvolver tal habilidade.”

Os dois homens pareciam interessados, mas Hans estava impaciente.

“Tudo bem, mas isso não explica nada.”

“Eu sei. Esse caso me é bem conhecido porque eu passei a estudá-lo”, continuou o teluriano. “Outros dois casos isolados foram registrados após três e cinco anos, respectivamente. Mas dessas vezes poucos dados foram catalogados, então eu não tenho informações substanciais.”

“O que aconteceu com esses indivíduos?” Hans estava preocupado com sua saúde, mas a maior preocupação era com seu destino. Se a milícia o estava perseguindo por causa disso, era de se suspeitar que pudessem fazer mais testes, experiências ou qualquer outra coisa. Antes de responder, Hemok mudou sua expressão para a de compaixão.

“Todos os indivíduos vieram a falecer após alguns meses da descoberta.”

A apreensão de Hans era quase palpável. Lars também parecia muito preocupado, agora que sabiam das proporções da história toda. Ele percebeu que permaneceu de pé durante toda a conversa e desde a chegada de Hans em seu apartamento. Permitiu-se sentar em sua poltrona pela primeira vez naquela noite, apoiando o rosto nas mãos em conjunto.

“Eu sei que parece um absurdo, mas nunca mais se soube de um caso como esses, até o dia de hoje”, continuou o alienígena. “Não é de se espantar que a milícia esteja atrás de você, Sr. Hans. Eu faço parte de um grupo seleto, formado por telurianos e também humanos, que estuda algumas teorias da segregação teluriana na Terra, desde o momento de nossa chegada. O grupo se deparou com questões muito pertinentes ao longo dos anos, mas até os dias de hoje nenhuma pôde ser provada realmente. Nesses casos em específico, se aplica um pensamento que não discutimos há muito tempo. Veja bem, a dieta teluriana, distribuída gratuitamente a todos os humanos, promete suprimir qualquer doença conhecida por vocês desde os primórdios de sua história, correto?”

Os homens responderam ao mesmo tempo: “Correto.”

“Acontece que o programa da dieta foi reestruturado um ano após a descoberta do primeiro caso, o do garoto na Suíça. Responda uma coisa, Sr. Hans. Há quanto tempo o senhor não segue a dieta?”

Hans encolheu-se diante do olhar reprovador de Lars. Parar de seguir a dieta era quase como uma sentença de morte, uma vez que o controle das doenças conhecidas havia deixado de ser feito por outros meios que não o da dieta rigorosa. Era feita de três comprimidos que deveriam ser ingeridos entre as refeições, duas vezes por semana. Deveria ser feito religiosamente para que a integridade física pudesse ser preservada.

“Já vai fazer dois anos.”

Hemok olhou para Lars como se dissesse "eu sabia". Lars, por sua vez, explodiu.

“Você é louco, caralho!” E ficou de pé novamente. Chegou tão perto de Hans que o homem por um momento sentiu que ele lhe atacaria com socos e pontapés. “O que você tem na cabeça? A porcaria da dieta é testada por seres humanos, seu imbecil! Era a única coisa que você tinha que seguir! A porcaria da dieta! É por essas e outras que eu agradeço a cada dia não viver mais com você. Sua desconfiança ainda vai te matar, Hans! Dois anos o caralho! Você vai amanhã mesmo buscar a porra da sua dieta naquele centro e eu vou com você.”

Hans não falou absolutamente nada. Ficou parado, olhando para Lars, mostrando que aquela explosão de raiva não o afetava de forma alguma. Por fim, voltou sua atenção novamente para Hemok, que agora parecia o único indivíduo com um nível de controle na sala.

“Teluriano, o que tem a ver o fato de eu parar de seguir a sua dieta com esses casos malucos de habilidades de cabeças-largas? Sabe, não é nada pessoal, mas pra mim não faz sentido.”

“Como eu disse, a dieta foi reestruturada um tempo depois da descoberta do primeiro caso. O meu grupo acredita que ela passou a servir também para outros propósitos além do que foi estabelecido inicialmente. Enfim, para falar logo a verdade, acreditamos que os seres humanos, de alguma forma, são capazes de desenvolver certas habilidades telurianas sim, mas não possuem toda a estrutura física ou mental necessárias para tal. Como nenhum caso psicossensorial foi registrado oficialmente em seu planeta antes da nossa chegada, só nos resta acreditar que tudo tenha começado após o Domínio. Também somos levados a acreditar que não é do interesse daqueles que regem esse planeta, ter humanos vivos mentalmente capazes de fazer as mesmas coisas que um teluriano faz. Veja bem, Sr. Hans, eu não simpatizo com todos os costumes do meu povo e também não tenho nada a ver com a decisão de meus ancestrais de abandonar Teluria e partir para uma recolonização na Terra. Acontece que não seria nada vantajoso para os líderes telurianos igualar as duas raças em níveis de poder mental. Por esse exato motivo acreditamos que a dieta também serve para suprimir tais habilidades, sendo essa hoje a principal razão de sua existência.”

Aquele mundo de informações ficou pairando no ar entre os três por um momento. Para começar, Hans se recusava a acreditar que, em algum ponto da História do universo, uma raça superior tenha invadido seu planeta e tomado tudo o que tinha por direito. Depois, havia o fato de que a vida humana mudou muito com a implementação das tecnologias telurianas no passar das décadas, como a Beta Kai. Por fim, vinha essa doença ridícula e a história de que sua mente era capaz de fazer as mesmas coisas que a dos cabeças-largas. Para Hans, aquilo era mais do que podia suportar. Não soube dizer se preferia retomar a dieta para sanar todo o sofrimento ou se continuaria tentando treinar seu corpo e sua mente para se igualar aos telurianos e sair descontando sua raiva em qualquer um que encontrasse pela frente. Mas ele era só um homem. Não tinha a capacidade de convencer mais nenhum ser humano a parar com a dieta e correr o risco de contaminar o mundo novamente com as milhares de doenças antes conhecidas. Por agora, o que podia fazer era fechar os olhos e respirar fundo. E foi o que ele fez.

Lars também permaneceu calado por alguns segundos, sem saber como responder àquelas informações que, se fossem reais, foram omitidas da população geral por quase meio século. Era impossível acreditar na hipótese de que os telurianos criaram uma espécie de arma biológica para embotar habilidades que os humanos poderiam desenvolver. Assim como Hans, não soube decidir se aquilo era algo bom ou ruim. Mais uma vez, foi Hemok que quebrou o silêncio na sala.

“Eu, como teluriano e também como simpatizante da raça humana, prefiro não acreditar que meu povo mantém a população sapiens rebaixada para poder se sobressair em poder. É algo que viola todos nossos costumes e certamente não partiu de uma mente sã. Francamente, Sr. Hans, eu sugiro que o senhor volte com a dieta e esqueça toda essa confusão. Muitas vezes é melhor recuar diante de um problema do que enfrentá-lo sem necessidade.”

Contudo, antes que Hans, Lars ou mesmo Hemok pudessem definir uma solução para aquele problema, ela se fez presente na forma de uma batida na porta do apartamento. Lars virou-se para a porta de repente, totalmente alerta. Não esperava mais nenhuma visita inusitada naquele dia, mas, pela terceira vez, aproximou-se e resmungou.

“Quem é que bate?”

Uma voz feminina, bem baixa, respondeu. Era uma vizinha de Lars, que buscava por suprimentos que lhe faltavam na geladeira. A velha costumava visitá-lo sempre que podia, oferecendo trocas ou mesmo bolos e tortas, frutos de sua falta do que fazer. Lars respondeu que no momento estava ocupado e que não possuía o que ela queria, torcendo para que a velha fosse embora de uma vez.

“Sr, Garrett, eu insisto que me deixe ao menos lhe dar uma torta. Acabou de sair do forno”.

Hans estava sem paciência e a dor de cabeça havia retornado, então gesticulou para que ele aceitasse logo o que ela tinha a oferecer e a mandasse ir pastar. Então a porta se abriu e a silhueta nítida e bem iluminada de uma velha apareceu no batente segurando um embrulho de pano. Os humanos na sala estavam tão absortos em pensamentos que não repararam nesse pequeno detalhe visível, mas Hemok verbalizou-o imediatamente.

“O que aconteceu com o Breu?”

Assim que Lars se deu conta do que havia acontecido, tentou fechar a porta com força, mas era tarde demais. A velha deu um passo para o lado e deixou que três oficiais telurianos entrassem no apartamento rapidamente, impedindo a saída de qualquer um que tentasse ultrapassar. Eles eram parecidos com Hemok em altura e fisiologia, mas suas expressões, assim como as dos humanos, diferiam entre si, dando a cada um deles características próprias. Vestiam o uniforme azul da milícia e apontavam armas complexas de aparência perigosa. O do meio parecia ser o chefe, pois levava à cabeça um quepe estranhíssimo aos olhos de Hans, mas que ofereciam ao teluriano uma aparência realmente oficial. Foi esse alienígena que deu um passo à frente e se prontificou a falar.

“Eu ia perguntar, mas não é difícil perceber quem é Hans Fredrik.” Ele olhou diretamente para Hans, que continuava sentado no sofá, sem ação. “Você é procurado pela Milícia de Los Angeles há vários anos. Dentre os crimes estão acusações de posse ilegal de arma, falsificação de identidade e outras pequenas infrações envolvendo a rede interna da Milícia. Não sei o que mais você aprontou, Hans Fredrik, mas tenho ordens para executar ações contra acusações altamente confidenciais. Você tem alguma coisa a falar em sua defesa?”

Hans estava cheio daquilo.

“Tenho. Vá se foder.”

Ele tentou imediatamente usar suas recém adquiridas habilidades e direcionar, pela última vez, toda sua energia corporal para as pernas a fim de se levantar, mas quando começou a mentalizar o processo, um dos oficiais telurianos disparou sua arma duas vezes. O primeiro projétil prateado acertou o joelho esquerdo de Hans, fazendo com que ele caísse no chão de forma grotesca, sem forças, em meio ao vômito vermelho já seco. O segundo o exterminou por completo. Entrou pela base da nuca e saiu do outro lado em um espirro de massa encefálica e sangue.

Enquanto dois dos fluidos corporais vermelhos de Hans se misturavam no carpete, Hemok se levantou em um pulo, sem acreditar no que estava acontecendo. Tentou gritar por misericórdia, com uma calma desacreditada, mas nenhum dos oficiais lhe deu ouvidos. Eles estavam interessados em completar a missão que os levou até aquele beco imundo, esperando receber congratulações dos mais altos níveis de poder da hierarquia teluriana ao final do dia. Um dos menores pegou Lars pelo colarinho e o jogou aos pés de Hemok com um soco no nariz.

 “Veja bem o que acontece com os humanos que se metem nos problemas dos telurianos.” Ele falava diretamente para Hemok. “Não esperava encontrar um dos nossos nessa espelunca, sinceramente. Fique tranquilo, não faremos com você a mesma coisa. Só vamos te levar sob custódia até a delegacia, onde terá direito de se explicar.”

“E– cadê o direito desses seres humanos?”, ele perguntou gaguejando.

“Criminosos não têm direito algum além desse.”

E disparou um terceiro projétil, que acertou diretamente a testa de Lars, obrigando o humano a ir ao chão fazer companhia para o cadáver ainda quente de Hans. Era irônico pensar que ambos tinham permanecido tantos anos separados para, enfim, se reunirem por uma última vez na morte. Contudo, já não havia mais ninguém para pensar nisso. Somente Hemok, que de culpado não tinha nada. Até sua raça naquela situação dava a ele alguma vantagem. Foi praticamente arrastado até o lado de fora do apartamento, pois não tinha mais condições físicas e mentais para suportar a realidade, e não teria por pelo menos mais alguns dias. Ele ainda não sabia, mas a partir daquele evento passaria a sonhar com a libertação da mente humana e buscaria combater o totalitarismo de seu próprio povo. Contudo, antes de desmaiar nos braços de um dos oficiais da milícia, Hemok pôde ouvir bem baixinho as últimas palavras do comandante.

“Alvo abatido, senhor. Nenhuma ameaça iminente.” O teluriano miliciano se calou somente para escutar o que alguém do outro lado da linha perguntava. “Sim, tivemos algumas casualidades. Um dos nossos está envolvido. Estamos levando o indivíduo até o senhor.”

E então apagou de vez.

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