Prólogo
- jeffpavanin

- 18 de mar. de 2017
- 7 min de leitura
Atualizado: há 15 horas
Tudo estava muito escuro. Um homem encapuzado subia a encosta de uma montanha tentando não tropeçar, fincando o cajado improvisado em cada saliência daquele solo rochoso. O terreno seco se transformava em poeira a cada passo dado. Fazia muito esforço, já tinha andado por três dias, descansando pouco para comer e dormir. Por mais que fosse treinado em sobrevivência, o homem sentia que poderia sucumbir a qualquer momento. As habilidades que ele possuía, ali de nada serviam. Toda a força que lhe restava ele tentava concentrar na flexão das pernas para que não caísse. Seu rosto estava coberto com um pedaço de tecido sujo, numa tentativa de proteger o nariz e a boca da poeira trazida pelo vento forte. O capuz de seu manto protegia os olhos e as orelhas.
Tudo era tão estranho naquela paisagem. Camadas de cascalho e terra preta se desprendiam da trilha estreita, rolando encosta abaixo rapidamente. A lateral da montanha era muito íngreme. Se desse um passo mais largo que o calculado, o homem perderia o equilíbrio e cairia, parando somente quando atingisse o chão a muitos metros dali. O objetivo, entretanto, não era chegar ao platô no topo da rocha, e sim encontrar uma caverna a pouca distância do ponto mais alto. Um pilar de pedra clara deveria sinalizar a localização exata, de acordo com o que lembrava. Dias antes, o homem tinha ouvido uma conversa peculiar enquanto bebia uma cerveja numa taverna em Gahari. Era uma cidade árida, mercantil, repleta de vagabundos que tentavam ganhar dinheiro a troco de boatos. Ali, boatos eram valiosos. A conversa acontecia entre três ou quadro mercadores após um dia cheio, sentados em uma mesa ao lado da sua. Falavam baixo, mas a audição aguçada permitia que ele entendesse cada palavra.
"Um alado que veio das Ilhas de Prata, foi ele quem me disse…", o mercador sussurrava, "…uma luz brilhante nas Terras Escuras, estou dizendo…".
Terras Escuras era como eram popularmente chamadas as Ilhas de Pedra, as últimas porções de terra a leste do oceano, no limite do mundo conhecido. Era um arquipélago que servia de habitat a uma diversidade de criaturas selvagens. Devido ao perigo iminente e ao clima extremo, poucos se aventuravam por lá. Naquele continente, eram somente as Ilhas de Prata que recebiam visitantes frequentes, mais a oeste, próximas do mundo conhecido. O mercador continuava:
"Disse que é algo nunca visto. Foi tão estranho que ele nem soube me explicar, entende? São coisas brilhantes, foi o que ele me disse. Eu acredito. Ele me contou tudo sem cobrar por isso, então eu acho que é verdade. É um alado, tem de ser verdade."
Os outros mercadores assentiram. Para eles, os alados não eram famosos por disseminar mentiras, faziam parte de grandes e respeitados grupos, como os Carmesins ou os Peregrinos. Poderiam ser punidos ou perder importantes negociações por calúnia. Informação era um dos bens mais valiosos em Gahari. Ali muitos povos se encontravam, gente que vinha de todas as partes de Daeva para vender e comprar mercadorias, portanto, informantes também eram comuns. O fato de um alado ter dado informações aparentemente valiosas a troco de nada, era no mínimo intrigante. O homem, que ouvia atentamente, girou em sua cadeira na direção dos mercadores e colocou uma bolsa de moedas na madeira puída da mesa com um tilintar abafado.
"Essas também são brilhantes."
Todos na mesa se assustaram. O locutor olhou para a bolsa com ganância, depois para o rosto encapuzado do outro homem. Garantiu que ninguém mais prestava atenção neles antes de arrastar o dinheiro pela mesa até um bolso escondido em seu casaco. Parecia animado. Fez um sinal para que o homem se sentasse com eles e outro para alguém trazer mais cerveja.
"Quem é você?", perguntou, enfim.
"Não te importa. Eu paguei. Conte-me tudo sobre isso."
Animado, o mercador contou.
E após ouvir tudo atentamente, o homem saiu da taverna e seguiu seu caminho. Chegar às Ilhas de Pedra não era tarefa fácil para um ser humano. O acesso se dava apenas através do ar. Por ser um território selvagem, as Ilhas não recebiam nenhum navio vindo do continente. Áreas onde só alados conseguiam atingir não eram incomuns, eles formavam a maioria da população de Daeva, era inevitável. Contudo, o homem não era um ser humano qualquer. Dias depois, em um platô de pouso no litoral leste daquele continente, o homem avistou as Ilhas ao longe. Concentrando-se, ajoelhou no chão de pedra branca e desapareceu.
Agora continuava sua subida até a caverna, três dias depois de chegar às Ilhas. Se materializar ali em cima seria perigoso demais, poderia terminar dentro da rocha sólida se não soubesse exatamente para onde ia. Por isso tinha feito todo o percurso a pé. Soube que tinha chegado ao ponto certo quando o pilar apareceu. A entrada da caverna era uma simples abertura natural. Se não fosse pelo brilho perolado que iluminava as paredes internas, seria uma caverna comum. Conforme o homem entrava na montanha, aquela escuridão lá de fora, o vento e a poeira iam ficando para trás. Ele tirou o pano amarrado sobre o nariz para inspirar o ar gelado e desceu o capuz. Fazia um pouco de frio e seus os olhos iam se acostumando àquela claridade estranha.
Esperou por aquele momento durante toda sua vida, a expectativa era altíssima. Se pudesse correr, ele teria corrido até o final daquela cavidade que se abria cada vez mais. O teto era alto, provavelmente atingia o topo da montanha, e lá em cima se penduravam estalactites brilhantes de algum material azulado. Não parecia gelo, tampouco a pedra escura que revestia aquela montanha.
Ele avistou uma pequena elevação no centro da grande caverna e por um instante perdeu o fôlego. Era exatamente como as imagens que ele tinha gravadas em sua mente. Os sonhos que o perseguiam desde a infância estavam concretizados ali e agora, bem diante de seus olhos. Subindo alguns degraus brancos, ofegante, o homem baixou os olhos para uma estrutura transparente e brilhante que o separava de uma figura quase duas vezes maior que ele mesmo. Com lágrimas nos olhos, colocou uma das mãos sobre aquela lâmina de vidro e suspirou.
Sentia alívio.
*
Os boatos se espalharam por Catharsis tão rápido quanto à água que corre no rio Pedestre. Havia algo errado. Ferreiros, açougueiros, criadas, pedintes e rameiras: todos comentavam a respeito do homem que havia chegado às muralhas de Alto Castelo e morrera antes de conseguir transmitir sua mensagem, que trazia perigo. Isso era o que o boato inicial dizia. Na Rua dos Pássaros comentava-se que o tal perigo vinha do sul e no Covil dos Gatos, um bar escuro e mal frequentado, diziam que vinha do oeste. Cada boca disseminava uma versão diferente. Pelas vielas só se viam expressões aflitas, confusas e o medo estava estampado nas caras sujas de cada criança que corria.
Diziam que o homem estava sem as duas mãos, com os tocos ensanguentados elevados ao céu da alvorada. Diziam que eram seus dedos que haviam sido mutilados. Diziam que na verdade era uma perna que faltava. Um ferreiro jurava que havia visto as mãos manchadas de sangue do tal homem que, caído frente às muralhas do castelo, ainda seguravam o cabo de uma espada negra e sem brilho. Uma rameira teimava em dizer que já havia se deitado com o homem e podia jurar que ele tinha vindo do leste, pra lá de Manta Salel, das Terras Escuras. Para o ferreiro, só os homens desprovidos de sanidade se atreviam a aventurar-se por aqueles lados e todos sabiam que nenhum deles jamais havia retornado para contar o que lá havia.
Mesmo apreensivas, as crianças da cidade apostavam corrida para ver qual delas chegaria primeiro às portas de Alto Castelo, mas todas acabavam perdendo, impedidas de prosseguir pela multidão que se acumulava em frente à Praça Branca, onde supostamente o homem se encontrava. Os que o viam não entendiam o que se passava. Lá na frente, na praça, uma mulher se encontrava ajoelhada ao lado do corpo imóvel de um rapaz que trazia uma espada negra cravada no abdômen.
Ali o boato era outro. Diziam que na verdade o homem havia caído do céu. Ninguém sabia como e nem o porquê, mas tinha caído do céu com uma espada cravada entre as costelas. Ao contrário do que traziam os primeiros boatos, antes de morrer o rapaz conseguira proferir mais que apenas murmúrios. Supostamente, ainda que moribundo, mandara chamar alguém do castelo para poder transmitir sua mensagem.
Havia quem dissesse que seus olhos escureceram logo depois disso e o fio de vida que lhe restava sumiu como água que evapora nos desertos de Nendal: em poucos segundos. A multidão ainda estava mergulhada em sussurros e murmúrios quando a mulher se levantou e se dirigiu para dentro do castelo. Pareceu dar alguma ordem, pois os guardas vestidos de branco e prata saíram de seus postos ao lado da grande porta de carvalho naëliano e levaram o corpo do homem também para dentro do castelo. Aos poucos, os curiosos foram se dispersando, pois já não havia nada mais para ver.
Durante um dia e uma noite ninguém saiu ou entrou em Alto Castelo. Todos se perguntavam que destino teria levado o corpo do rapaz, que a essa altura já deveria ter sido transportado para o cemitério da cidade. Mais uma vez, Catharsis brilhava à luz da alvorada, com o grande astro iluminando as terras lá do horizonte.
Dois dias depois do ocorrido, as pesadas portas de carvalho branco se abriram em Alto Castelo, e de lá saiu uma tropa de trinta homens vestidos de branco e prata, armados com lanças prateadas; quinze a cavalo, quinze a pé. Seguiram para o portão da grande cidade, rumo à saída. Por onde passavam atraíam olhares curiosos dos cidadãos que se amontoavam pelos cantos e sussurravam novamente sobre o mistério que toda aquela situação levantava. Quando os cavaleiros reais saíram pelos portões, todos viram que seguiam para o leste. Os sussurros aumentaram e novos boatos foram criados. No Covil dos Gatos, o ferreiro e a rameira voltaram a discutir trivialidades enquanto os homens iam sumindo no horizonte, se distanciando a cada passo dado.

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