02 - Para os meus olhos apenas
- jeffpavanin

- há 14 horas
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Conforme a mulher andava, eu percebi que a barra de seu vestido batia em suas pernas e balançava para frente e para trás de maneira ruidosa. Era mais velha, usava um coque bem preso acima da cabeça, de onde não saia um fio solto. Além disso, e do som de seus passos, permaneceu o caminho todo em silêncio, o que me deu a oportunidade de observar ainda mais a universidade que me rodeava. Era estranho caminhar pelos corredores fantasmagóricos daquele prédio, que estariam vazios por mais dois dias, segundo Glauco. Tentei bisbilhotar o interior das salas de aula através das que tinham as portas abertas, mas estávamos andando tão rápido que mal dava para ver o que escondiam. Quando eu era mais novo, adorava explorar os cômodos mais distantes da mansão da família Conti, que eram tão misteriosos quanto familiares. No fim, não encontrava muita coisa além de móveis velhos e objetos empoeirados. Agora, eu tentava acompanhar o passo da mulher e estava quase começando a correr quando ela desacelerou e parou de frente à uma porta fechada.
Ela soltou um longo suspiro antes de se virar para mim.
"Este era o gabinete de seu avô", começou ela. Não parecia particularmente alegre, havia algo de tristeza em seu olhar. "Está fechado há anos. O último que passou por essa porta foi ele."
Ela estendeu a mão para mim. Em sua palma tinha uma chave.
"Apesar de termos a chave, ninguém se atreveu a perturbar a memória do Sr. Conti por todos esses anos. Aliás, acho que ninguém gostaria."
Na hora, eu não disse nada. Comecei a perceber que a partir de agora tudo seria mesmo uma novidade para mim. Aceitei a chave ainda em silêncio.
"Você pode ficar à vontade para fazer o que quiser, Sr. Conti." Ela dizia o sobrenome de forma estranha. Parecia hesitar. "Afinal, tudo o que pertenceu ao seu avô agora pertence à você. Eu me chamo Agnes. O meu gabinete fica na biblioteca, não é longe daqui. Você pode me procurar se precisar de alguma coisa."
Antes que eu pudesse agradecer, ela deu meia volta e continuou pelo corredor. Observei Agnes se afastar e caminhar em direção ao âmago da universidade enquanto meus dedos apertavam aquela chave. A mulher parecia um vulto. Eu tinha acabado de chegar na universidade e em pouco tempo descobri que as pessoas poderiam ser acolhedoras e ao mesmo tempo assustadoras. Ainda herdei um gabinete dentro do campus. Se o cômodo se assemelhasse minimamente àquele que meu avô mantinha na mansão, estaria repleto de livros e instrumentos musicais.
Ainda que eu estivesse curioso, não consegui entrar naquele lugar sem hesitar. Sentia que aquilo não me pertencia realmente. Como encarar a realidade de que meu avô havia deixado absolutamente todas as suas posses para mim? Nunca, em todos esses anos, eu me senti realmente merecedor do seu legado. A família Conti é grande e tenho parentes espalhados pelo país, certamente alguém poderia tomar conta de tudo melhor do que eu, certo? Meu avô tem um filho adulto, Charles, que mora com a esposa em outro estado. Ele talvez teria sido a melhor escolha. Eu era apenas uma criança quando o testamento entrou em nossas vidas. Lembro que Charles, assim como o restante dos Conti, não ficou feliz ao descobrir que o órfão ramelão herdaria os bens materiais do patriarca. Lembro que naquele dia, no velório, Charles teve uma espécie de surto quando o homem misterioso foi embora.
"O velho realmente estava louco!", teria dito para os presentes. "Deixar uma fortuna para esse moleque. Queria que minha irmã estivesse viva para dar um jeito nisso."
Ele se referia a minha mãe. Nunca a conheci de fato. Havia morrido meses depois do meu nascimento, com o meu pai, em um acidente de carro. Diziam que era uma pessoa rude e ríspida, que tratava todo mundo mal. Não tinha uma boa reputação e as pessoas sempre faziam questão de lembrar disso. Meu avô foi o único que tentou manter uma boa memória da filha. Quando estava em casa, me mostrava álbuns com fotografias amareladas de quando minha mãe era jovem e feliz. Contava histórias de sua adolescência, quando aprendeu a gostar de escrever, até a publicação de seu primeiro e único livro. Com pesar, dizia que era uma pena ela ter abandonado a carreira quando casou-se com meu pai. Dele, falavam muito menos. Havia se inserido na família Conti quando se casou com minha mãe e meus avós tiveram realmente pouco contato com ele. A única recordação que eu tinha dele era uma foto, nesse mesmo álbum, na qual ele posava ao lado de minha mãe nos campos da mansão. Faz tempo que vi essa foto pela última vez.
Apesar de tudo, eu não me opunha a ter o melhor de meu avô para mim. Pensando nisso, finalmente destranquei a porta e entrei no gabinete. Achei que encontraria um quarto escuro, mas a parede do lado esquerdo era uma grande janela que dava para uma espécie de jardim interno, com uma clarabóia que deixava a luz do dia entrar. Jardim talvez não era a palavra certa para descrever o que eu via, pois as plantas haviam crescido muito e, como disse Agnes, ninguém entrava ali há treze anos. A vegetação densa impedia que a pouca luz do sol iluminasse todo o cômodo e eu preferi acender a luz. O gabinete era exatamente o que eu esperava: uma cópia quase fiel do escritório que meu avô mantinha na mansão, com as paredes repletas de livros e um cômodo adjacente, onde certamente ele guardava seus instrumentos. A única diferença era a grande quantidade de armários que tomava conta de um dos lados. Eu queria abrir todos e ver o que continham, queria analisar todos os títulos que meu avô mantinha ali, mas eu sentia que de certa forma estava violando um espaço quase sagrado, intocado por anos, que ainda não me parecia de verdade.
Para muitos, os livros e pertences de Ernesto Conti poderiam parecer velharias, mas para mim era, claro, tudo o que restava dele. Para ser sincero, eu nunca pensei na quantia em dinheiro que eu herdei, e que provavelmente está em minha conta bancária desde meus dezoito anos, mas sempre tive apego ao resto. Quando era vivo, meu avô fazia questão de compartilhar comigo os poucos dias que passava longe da Universidade Helicon, tocando seus instrumentos e lendo seus livros, que de alguma forma também eram meus, naqueles momentos. Talvez esse pensamento me ajudasse a aceitar tudo o que herdei. Passando pelos armários, notei que todas as superfícies estavam cobertas de poeira, assim como a mesa de madeira e a cadeira de couro gasto. Quando tivesse um tempo eu deveria limpar aquele lugar. Agora eu era o único responsável por tudo aquilo.
Diferente do que eu imaginava, o cômodo ao lado não guardava os instrumentos do meu avô. Aparentemente, todo seu acervo era mantido na mansão. Aquele quarto reunia mais uma grande quantidade de armários, de uma variedade de tamanhos que iam de gavetas minúsculas à grandes compartimentos. Havia uma mesa redonda no centro com uma caixa fechada em cima e, apoiado em uma parede, estava um grande espelho retangular. Algo me chamou atenção naquele espelho quando cheguei mais perto. Sua superfície era incomum: espelhava a minha imagem de forma opaca e desfocada, diferente da imagem cristalina que deveria refletir. Pensei que talvez estivesse muito sujo pelos anos de poeira, mas quando tentei limpar com a manga do meu uniforme, não consegui. Em outro momento passaria um pano. Voltei para inspecionar os armários, tentando abrir as pequenas gavetas, mas estavam todas trancadas. Eu teria que procurar as chaves se quisesse mesmo ver o que todos guardavam. Fui então ver a caixa em cima da mesa.
Era uma caixa de papelão comum e, diferente de todo o resto, não estava lacrada. Abri as abas sem muito cuidado e o conteúdo se revelou rapidamente. A caixa continha uma grande quantidade de cadernos de anotações. Todos eram iguais, encadernados em uma espécie de couro escuro. Folheei os primeiros e percebi que reunia diversas anotações feitas à mão. Eu reconhecia aquela caligrafia, meu avô tinha o hábito de fazer pequenas anotações nas margens dos livros da nossa biblioteca. Destacava vocábulos, fazia observações e às vezes rabiscava uma ideia ou uma referência de outro livro, para que eu buscasse depois. Fiz uma leitura rápida das primeiras páginas e reparei que continham anotações de aulas e teses, termos e conceitos que eu não entendia. Ernesto Conti era um erudito e dono de uma inteligência ímpar, de acordo com o que todos me diziam. Quando pequeno, eu não tinha ampla noção disso, mas aprendia tudo o que ele me ensinava. Estava prestes a deixar a caixa de lado quando percebi um grupo desses cadernos amarrados em um cordão com um papel que dizia: "Para Anton".
Meu sangue gelou. Desde o testamento, nunca houve outra palavra escrita por ele que fosse direcionada a mim. Não havia uma carta ou qualquer outro pedaço de papel que dissesse de que forma eu deveria lidar com tudo o que me foi dado. Era a primeira vez, inclusive, que eu lia o meu nome em uma folha, pois nem para ingressar na Hélicon precisei preencher qualquer formulário ou matrícula. Mais uma vez a ansiedade me dominou e eu desamarrei aquele cordão como se minha vida dependesse desse ato. O primeiro caderno iniciava com uma página quase em branco, com apenas um número anotado no canto superior direito: "1". O segundo, seguindo a lógica, continha o número 2. Eram três no total, todos numerados. Passei para a página seguinte do primeiro caderno numerado e me deparei com um papel dobrado. Ao abri-lo, senti como se meu coração tivesse pulado uma batida, pois percebi que era uma carta. Endereçada a mim. Antes que eu pudesse pensar, li:
"Para Anton Conti.
Querido Anton. Se está lendo essa carta, já não estou aí para te dizer tudo o que gostaria. Minha vida neste plano chegou ao fim. Deixo a você tudo o que tenho, pois sei que você será o único a valorizar o que conquistei. Vai encontrar nesses diários algumas anotações que certamente julgará interessantes. São conhecimentos que reunimos ao longo dos anos, de valor inestimável. Não deixe que ninguém tenha acesso a eles. Ninguém. São para seus olhos e seus olhos apenas. Espero que faça bom uso do que guardo em minha sala na universidade, mas tome cuidado. Confiei as chaves à Agnes e a adicionei ao testamento como minha propriedade. Agora sua. Gostaria de escrever tudo nesta carta, mas não posso. Conte apenas com Hector durante sua vida na Hélicon. Não confie em mais ninguém.
Há pessoas que vão querer tirar tudo de você.
Desvele.
Do seu avô, Ernesto Conti."
Virei o papel, mas em seu verso não tinha mais nada. Aquela carta continha as últimas palavras de meu avô para mim. E eu estava tão confuso quanto antes. Algumas frases não faziam sentido. Por que as anotações seriam de valor inestimável? Quem poderia querer roubar conhecimento? Eu achava que meu avô vivia para reunir e transmitir conhecimento, pois lecionava em uma universidade. E por que havia pessoas que iriam querer tirar tudo de mim? Eu nem fazia ideia ainda do que era tudo exatamente. O dinheiro? Os diários? Será que ele se referia a Charles? Meu tio expressou seu desgosto pela decisão da herança, mas até então eu pensava que tudo era uma questão de dinheiro. O que o gabinete contém? Eram tantas perguntas. A carta dizia que eu poderia confiar em um homem chamado Hector, mas quem era ele? Talvez fosse outro professor. Em breve eu o conheceria, certo? Peguei a carta e os três diários numerados e saí do gabinete. Não fazia sentido eu ficar ali agora, tudo estava trancado. Eu queria ler os diários, saber que conhecimento era tão valioso a ponto de alguém querer roubá-lo. Outras coisas ainda me incomodavam em relação àquela carta, mas na hora não soube identificar o que era. Decidi não fazer mais perguntas por enquanto.
De volta ao corredor, mais uma vez me encontrei sozinho na amplitude daqueles salões. Agnes não estava por perto e eu ainda não sabia como encontrar a biblioteca, onde ela mantinha o seu próprio gabinete. Os estudantes ainda deveriam estar na Clareira, mas eu precisava guardar os diários em algum local seguro. Voltei então ao dormitório. Se era vital garantir que ninguém tivesse acesso a eles, como dizia a carta, pois eram para os meus olhos apenas, eu deveria trancá-los em algum lugar até que eu pudesse examiná-los com cuidado. O mais correto seria deixá-los no gabinete do meu avô, mas eu queria mantê-los por perto. Assim, peguei uma das minhas malas, coloquei-os em um compartimento interno com zíper e enfiei a mala em um espaço vazio dentro do guarda-roupa. Ninguém os encontraria ali, certo? Meu suposto colega de dormitório só chegaria em dois dias. Eu leria o possível nesse meio tempo e depois os devolveria ao gabinete.
"O que você está fazendo?".
Era a voz de Glauco. Virei-me e dei de cara com o estudante mais velho. Aqueles olhos… Não consegui responder o que eu queria, de minha boca saíram só ruídos.
"Você está gaguejando. É bonitinho."
Eu devo ter corado, pois ele abriu um sorriso zombeteiro.
"Estava terminando de guardar minhas coisas", consegui dizer.
"Olha, nós estamos indo lá para fora. Tem um coreto ao lado do Departamento de Psicologia. A Ceci gosta de tocar lá também. Você quer vir?"
"Quero".
E assim, mais uma vez, segui Glauco pelos corredores. Os diários teriam de esperar por um momento mais oportuno. Sentia que seria bom conhecer de fato alguns alunos antes do início das aulas, quando a universidade ficaria abarrotada de gente. Voltaria ao gabinete ainda muitas vezes, precisava encontrar uma forma de abrir todos os armários, saber que segredos guardavam. Contudo, por agora, me contentei em ouvir Ceci tocar a cítara, que exercia um entorpecente poder sobre nós. Foi assim que passei o primeiro dia naquele lugar novo. Junto de pessoas desconhecidas, ouvindo músicas conhecidas, sentindo o vento da tarde lamber meu rosto. Eu viveria o próximo ano com todos eles.
E eu ainda não sabia que nem todos sobreviveriam.

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