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04 - Desaparecido, talvez morto

  • Foto do escritor: jeffpavanin
    jeffpavanin
  • há 1 hora
  • 11 min de leitura

Um sonho esquisito tomou conta do meu sono naquela noite. Envolvia meu avô e aquele grupo de pessoas com ele na foto antiga que eu tinha encontrado no gabinete. No sonho, eles não estavam de frente à Hélicon, como na foto, mas em outro lugar, um ambiente escuro e cheio de mistério. Estavam todos sentados ao redor de uma grande mesa circular. A mesa, ou algo em seu centro, parecia emanar uma luz pálida, que parecia ser a única fonte de iluminação naquela cena, e dava a todos os rostos uma expressão etérea, quase distorcida. Nada aconteceu no sonho, era apenas uma imagem. Ninguém disse ou fez qualquer coisa. Acordei no dia seguinte sentindo uma leve dor de cabeça. Eu não consegui interpretar o significado daquele sonho, pensei que a dor pudesse ser apenas vestígios da ansiedade que tudo aquilo começava a gerar. Será que na universidade eles ensinavam a interpretar sonhos? Talvez eu não demorasse muito pra eu saber, as aulas se iniciavam hoje. A psicologia era uma área de interesse bastante presente na biblioteca de meu avô e eu tinha lido algumas coisas sem pretensão. Quando eu soube que essa era uma das opções de curso, não pensei duas vezes. Eu havia convivido pouco com pessoas, queria aprender mais sobre elas.

Notei que o quarto estava diferente quando levantei. Provavelmente Sebastian havia chegado em algum momento durante a noite, pois a cama ao lado estava desarrumada e  com malas abertas. A porta do pequeno lavabo anexo ao dormitório estava entreaberta e de lá saíam vapores. O meu colega de quarto estava no banho. Até então eu nem tinha percebido que havia um banheiro completo dentro do próprio quarto, mas saber disso me tranquilizou. Não queria ter que usar vestiários compartilhados com outros estudantes, seria humilhante demais. De qualquer forma, deveria esperar ele sair para que eu pudesse usar. Fui, então, retirar o meu uniforme do guarda-roupas. As regras da universidade diziam que os estudantes podiam usar camisas, sapatos e acessórios próprios, mas o resto do vestuário deveria ser do uniforme. Era um conjunto de um azul bem escuro, quase preto, e o paletó levava o símbolo dourado da Hélicon no peito. Eu vestiria uma camisa branca por baixo, que era a única cor de camisas que eu tinha levado.

"E aí?", disse uma voz atrás de mim. De sobressalto me virei e me deparei com um garoto descamisado, de cabelos molhados, com uma toalha enrolada na cintura. "Beleza?"

"Beleza", eu consegui responder. Ele acenou em resposta.

Sebastian parecia não ter pudores, pois virou-se para suas malas retirando a toalha da cintura, ficando completamente nú diante de mim, um desconhecido. Tentei não olhar. Era pouco musculoso, mas torneado, e tinha um pouco de pêlos no peito. Vestiu cuecas brancas, calças e logo estava com o uniforme completo. Os cabelos castanhos caíam molhados até pouco abaixo das orelhas e ele os jogou para um lado com as mãos. Eu assistia àquela cena quase como se estivesse hipnotizado. Minha adolescência na mansão tinha sido de solidão. Eu não convivi com outras figuras masculinas além dos funcionários da família e de meu próprio avô, que passava meses fora. Não havia outros jovens. Aquele corpo nú era o primeiro no qual eu punha meus olhos e a experiência não foi nada desagradável. Contudo, eu não sabia o que sentir ou dizer. Foi como sair de um transe quando me dei conta de que ele percebeu que eu o olhava.

"Qual é seu nome? Foi mal, nem perguntei", disse e estendeu a mão pra mim.

"Anton". Foi só o que eu disse ao retribuir o aperto de mão.

"Prazer, o meu é Sebastian", ele continuou. "Acho que temos Introdução à Psicologia no Bloco C, lá fora. A gente se vê por lá, cara".

Ele pegou uma mochila e saiu do dormitório. A fala de Sebastian me trouxe a realidade de que estávamos no mesmo curso. Então, a distribuição de dormitórios entre estudantes deveria ser por curso. Não sei porque pensei nisso. Com a imagem de um homem nú ainda gravada no meu imaginário, fui tomar meu banho. O banheiro ainda estava cheio de vapores de água quente e com um aroma de flores. Havia um espelho vertical em uma das paredes de ladrilho escuro, no qual vi minha imagem refletida. Diferente do espelho do gabinete, esse refletia formas bem nítidas. Um garoto de 20 anos, pálido, de cabelos pretos curtos, me encarava de volta com uma expressão meio assustada. Tirei a roupa amassada da noite e observei meu próprio corpo. Peito liso, físico bem comum. Talvez magro demais. Eu não tinha outras referências. Tinha Sebastian. Meu corpo era completamente diferente do dele. Nunca frequentei academia, não fazia exercícios na mansão, passava os dias lendo e estudando. Tomava pouco sol (nunca gostei do clima quente) e devia sofrer algum tipo de déficit vitamínico, pois muitas vezes me sentia fraco. Joguei as roupas em um cesto e entrei debaixo do chuveiro.

Pouco tempo depois, e já com o uniforme, saí do prédio principal da Hélicon, em direção ao Departamento de Psicologia. A universidade estava, àquela hora, como eu esperava ter encontrado dois dias atrás, quando cheguei: movimentada. Muitos estudantes se encontravam deitados no gramado, com seus livros e objetos, olhando para celulares e rindo com seus colegas. Alguns ainda carregavam malas, pois tinham acabado de chegar. Pensei que os horários deveriam ser diferentes para cada turma, pois tinham muitos despreocupados enquanto outros corriam para as salas de aula. O Bloco C ficava próximo ao refeitório e o reconheci logo por causa do coreto no jardim ao lado. Estivemos lá no dia anterior, ouvindo Ceci tocar. Glauco e os outros não estavam ali agora, mas sim outros estudantes. Deviam já ter corrido para suas próprias salas de aula. Fiz o mesmo e consegui encontrar a minha sem dificuldades. Os números acima das salas eram bem visíveis e eu teria minha primeira disciplina na sala de número 27.

Estranhei o número de alunos na sala, estávamos em treze pessoas. Pensei que o primeiro ano deveria ter mais alunos, já que era o início de uma turma nova, mas pelo jeito me enganei. Sebastian estava sentado na última fileira de carteiras, perto da janela, e acenou para mim quando sentei na fileira ao lado. As carteiras eram individuais e feitas de madeira, confeccionadas de tal forma que pareciam pequenas escrivaninhas. Cada uma tinha uma gaveta numerada logo abaixo do tampo da mesa e eu poderia trancar com uma chave, se quisesse. Só que não havia chave alguma. Estava colocando meus pertences na gaveta quando a professora entrou na sala. Eu me lembrava de ter lido seu nome nos meus horários. Letitia Belvedere era uma mulher de meia idade, de cabelos ruivos bem escuros, usava um suéter verde e uma saia longa. Ela me pareceu bem pouco sofisticada, mas sorriu alegremente quando olhou para a turma reunida.

"Que incrível ver essa sala cheia", começou dizendo. "No ano passado tivemos só sete alunos em Psicologia e no anterior nem turma abriu. Estou feliz de verdade!".

Nós, os alunos, trocamos olhares curiosos. Provavelmente os outros também pensavam que o número era ligeiramente pequeno para uma turma de graduação, comparado ao que os demais cursos deveriam receber anualmente. Apesar disso, ninguém disse nada. A professora continuou seu discurso dizendo que era uma honra receber novos alunos e que esperava que todos estivessem entusiasmados para aprender o ofício. A aula seguiu normalmente depois disso, com Letitia apresentando a ementa da disciplina e a previsão de datas para trabalhos e exames, que aconteceriam no final do primeiro trimestre. A disciplina seria bem introdutória, como o nome sugeria, e ela iniciou a aula com um histórico de como a psicologia havia surgido. Eu lembrava de ter lido sobre isso na biblioteca da mansão depois da morte de meu avô, pois o nome de Wilhelm Wundt, o fundador do primeiro laboratório de psicologia experimental, era único demais pra que eu o esquecesse. Tudo fez ainda mais sentido ao lembrar que filosofia era uma das áreas de estudo de meu avô, pois, conforme Letitia dizia, a psicologia havia se originado da filosofia, e meu avô gostava de falar sobre ambas as áreas. A mente, o corpo e a natureza da consciência eram seus objetos de estudo e também seriam os meus.

Ao final do primeiro período, a Sra. Belvedere liberou os alunos para o intervalo, mas me pediu para aguardar alguns minutos. Sebastian me lançou um olhar curioso quando passou por mim e eu balancei os ombros. Não sabia o que ela queria comigo. Quando todos haviam saído, me aproximei de sua mesa.

"Sr. Conti, que prazer recebê-lo em minha turma", disse. Abriu um dos seus frequentes sorrisos ao dizer meu sobrenome, entusiasmada. "Seu avô foi um acadêmico de extrema importância para a Universidade Hélicon. Lamentamos muito quando ele… Bem, quando ele partiu".

Ela me lançou um olhar condescendente e segurou meu braço por um segundo, como se meu avô tivesse acabado de falecer e estivéssemos em seu enterro. Continuou:

"Fiquei muito feliz quando soube que iria se juntar a nós aqui no Departamento de Psicologia. Pensei que talvez pudesse escolher cursar Filosofia, devido à natureza dos estudos de seu avô. Espero que eu possa te ajudar a se adaptar aqui na Helicon. Posso te ajudar no que você precisar, é só me procurar em minha sala, fica logo aqui ao lado".

Belvedere não era um dos nomes que constava nas anotações de meu avô e, como se algo coçasse o fundo da minha mente, na hora me questionei se deveria confiar na primeira professora que encontrei, mesmo que ela fosse toda sorrisos. Parecia se esforçar para soar simpática. Talvez simpática demais, mas eu ainda não tinha noção do que isso significava. De qualquer forma, eu a agradeci.

"Eu agradeço, Sra. Belvedere. Todos me recepcionaram muito bem".

E era verdade. Até esse momento, todos os alunos que cruzaram o meu caminho - e também Agnes, que tinha me ajudado com as malas e a encontrar o gabinete -, tinham sido bem agradáveis comigo. Glauco e os outros tinham me acolhido mesmo antes de ouvirem Agnes pronunciar meu sobrenome. Aquele sentimento de pertencer que eu havia sentido antes perdurava, mesmo depois de eu ter encontrado os diários e aquela carta enigmática. Apesar disso, a pessoa que poderia realmente me transmitir a segurança de que eu precisava pra viver meus dias na Hélicon ainda era meu avô que, mesmo morto, era quem eu mais conhecia e podia confiar. Era família.

Eu estava prestes a me despedir e sair quando ela segurou meu braço de novo, mas dessa vez com mais força.

"O que você precisar, querido. Qualquer coisa", disse antes de me soltar. "Agora vá, não se atrase para a próxima aula".

E assim, finalmente, eu saí da sala e segui para o refeitório. Talvez eu tenha notado em sua voz uma necessidade urgente de me ajudar, mas não conseguia pensar em nada que ela pudesse fazer para tornar minha vivência na universidade ainda mais tranquila, além de lecionar sua disciplina e me dar uma boa nota no final do semestre. Era meu primeiro dia oficial na Helicon, era a primeira disciplina, e eu já estranhava o comportamento de uma pessoa em relação a mim. Toquei o local que ela havia segurado em meu braço e tentei desanuviar meus pensamentos. Quando atravessei o gramado até o prédio do refeitório, foquei minhas energias em comer qualquer coisa para aguentar até o almoço. Encontrei Glauco e os garotos da Economia sentados em uma longa mesa, procurei Ceci e Amanda com os olhos, mas elas não estavam lá. O intervalo deveria durar vinte minutos e, contando que eu tinha perdido os primeiros cinco com a Sra. Belvedere, precisava passar os outros quinze socializando até o início das próximas aulas. 

Glauco acenou para mim quando me viu, fazendo um gesto para que eu me juntasse a eles com a minha bandeja. Assim o fiz, sentando-me de frente para ele. Já conversavam sobre alguma coisa antes de eu chegar, então comecei a comer enquanto ouvia.

"A aula desse cara é insuportável. Ele é insuportável. Esse ano já começou um desastre", dizia Felix. "Não sei como deixam um professor como ele dar aula aqui, é grosso com todo mundo. Mais um ano aguentando o Sr. Pegadinhas".

Léo e Gustav riram do comentário, pareciam compartilhar da mesma opinião. Eu não conhecia o Sr. Pegadinhas e esperava que ele não fosse um desses professores que lecionam em vários cursos, não queria ter que lidar com mais um problema. Bem, eu ainda havia conhecido apenas um professor do curso e torcia para que todos os outros fossem tranquilos. Eu comia uma torrada com geléia quando Glauco se dirigiu a mim:

"E como foi a sua primeira aula, Anton?", ele perguntou. 

"Ah, foi tranquila. Foi Introdução à Psicologia", eu respondi. Questionei-me se seria prudente comentar sobre a abordagem da professora comigo, mas Glauco foi mais rápido do que eu ao continuar a conversa:

"Ah, com a Sra. Belvedere. Ela é esquisita, mas a aula é boa. Não pega muito no nosso pé e faz provas fáceis. Você vai se sair bem".

Sim, eu também tinha achado Letitia Belvedere um pouco excêntrica, mas eu tinha lidado com excentricidades antes na mansão, todos os meus professores tinham suas particularidades. Alguns gostavam de passar mais tempo do que deveriam na mansão, tomando chás ou visitando os jardins e tive tempo de conhecê-los além do ofício. Sabia o que faziam em suas horas vagas, se eram casados ou se tinham filhos, o que gostavam de fazer aos finais de semana. As conversas na mesa de café da tarde até me alegravam, pois eu tinha que passar o resto dos dias sozinho quando eles não estavam presentes. Eu não tinha problema algum com eles. O que me incomoda em alguém é a forma como a pessoa lida com os outros. Isso me chama atenção logo na primeira impressão e a impressão que eu tive da Sra. Belvedere não foi das melhores. Ainda estava pensando no que ela havia dito sobre querer me ajudar, além daquele olhar… Causou-me calafrios.

"Eu achei ela esquisita mesmo", comentei com os garotos. "Me chamou depois da aula pra dizer que me ajudaria com qualquer coisa que eu precisasse e segurou o meu braço".

Os garotos se entreolharam brevemente, como se compartilhassem um entendimento sobre aquilo.

"O que? Ela também é assim com outros alunos?", resolvi perguntar.

Foi Félix quem explicou:

"Algumas coisas têm sido estranhas desde o final do ano passado. Existem alguns alunos que reclamaram dela na reitoria. E não só dela".

"Não sei, parece que há uma atmosfera de receio entre alguns dos professores desde que o Sr. Moretti desapareceu", continuou Glauco.

Aquilo gelou meu sangue por um segundo. Seria possível que estivessem falando de Hector Moretti? Finalmente uma menção ao homem desde que eu tinha lido sobre ele na carta. E ele aparentemente estava desaparecido. 

"O que aconteceu com o Sr. Moretti?", perguntei, sem deixar entender que eu conhecia aquele nome. "Era professor de qual curso?".

"Da Economia", respondeu Gustav. "E também de Filosofia e História. Em novembro do ano passado, o Sr. Moretti não apareceu para uma de suas aulas. Acharam que ele poderia estar indisposto ou algo do tipo, mas não conseguiram entrar em contato com ele e dispensaram a turma. No dia seguinte, ele também não apareceu e tem sido assim desde então".

"Falaram com a família e eles também não sabem do paradeiro", continuou Glauco. "Ele não tem filhos, mas tem duas irmãs que moram em outro estado. Elas não ouviam falar dele há anos. Acho que não mantinham contato".

De primeira, achei estranho que os garotos soubessem tanto sobre a vida de um professor, ainda mais depois de seu desaparecimento, mas lembrei que eu também sabia sobre a vida dos meus. Hector Moretti talvez tivesse uma relação próxima com seus alunos.

"Acionaram a polícia do estado, mas não tiveram muito sucesso em encontrá-lo", explicou Glauco. "Ninguém sabe se as investigações continuam acontecendo, mas não se fala mais sobre isso. Acho que a maioria resolveu aceitar que morreu em algum lugar e foi enterrado como indigente, porque o cara era bem velho e parecia meio louco nos últimos anos".

Desaparecido, talvez morto. Meio louco. Esse era o status da única pessoa viva na qual eu deveria confiar, segundo a carta. Eu ainda não fazia ideia da amplitude de tudo que meu avô tinha deixado pra mim além da fortuna e da vaga na Helicon. Não sabia o que os diários diziam, pois estavam todos rasurados. Também não sabia qual o conhecimento que eu deveria guardar para que ninguém tivesse acesso, e menos ainda sobre onde e como encontrar tal conhecimento. As gavetas e armários do gabinete estavam todos trancados e não havia um molho de chaves disponível. A foto e os documentos que encontrei na gaveta não diziam muita coisa além de nomes e rostos desconhecidos. O perigo iminente que a carta transmitia não fazia sentido algum pra mim. Eu estava no escuro e ninguém podia me ajudar a desvendar esses mistérios. 

O assunto sobre o professor desaparecido foi minguando e se tornando outros assuntos conforme os minutos passavam. Glauco e os garotos terminaram sua refeição e se despediram de mim quando voltaram para seus afazeres. Eu teria mais uma aula antes do almoço e à tarde eu estaria livre para fazer o que eu quiser. Talvez eu devesse voltar no gabinete e forçar algumas daquelas trancas nos armários, em busca de qualquer coisa que me desse uma luz sobre os segredos de Ernesto Conti. Agora eram os meus segredos. Lembrei que eu ainda não tinha visto com atenção as outras imagens que tinha encontrado na pasta no gabinete. Eram objetos e lugares que talvez pudessem me ajudar a entender melhor o que tudo aquilo significava. 

Em apenas três dias na Universidade Helicon eu já havia questionado algumas coisas que jamais teria pensado em questionar quando vivia com o meu avô. Contudo, uma única pergunta me incomodava mais que as outras.

Quem foi Ernesto Conti de verdade?


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