Alcova
- jeffpavanin

- 23 de out. de 2015
- 18 min de leitura

As planícies de Viera nunca estiveram tão iluminadas. Com os Astros a pino fazendo reluzir os vértices de cada gramínea, os olhos de Sarah lacrimejavam tanto e nem mesmo conseguiam se fixar na paisagem lá embaixo sem que doessem. Tocou na crina de Haja para apaziguar a dor que a égua sentia por baixo dos cascos e pôs-se a ajeitar as ferraduras das patas traseiras de sua companheira. “Aguente firme”, ela sussurrou nos ouvidos do animal. “Estamos quase lá”. Deram-se mais alguns minutos para que descansasse a mente e o corpo antes que ela voltasse a montar no dorso de Haja para prosseguir com a viagem.
Cavalgavam há dias, parando para descansar em pequenos vilarejos ou em meio a raízes de velhas árvores. Sarah não podia reclamar. Viera estava em sua melhor estação. Aquela parte do mundo não sofria com a poluição bastante presente ao norte, mas, assim como qualquer outra região, estava sofrendo com as consequências da chegada do Segundo Astro. Ao menos era assim que os estudiosos agora chamavam a estrela que se aproximava do mundo mais e mais a cada novo dia.
O solo em que pisavam estava agora mais quente que há três ciclos atrás, deixando as solas de qualquer calçado com uma camada de negrume de borracha queimada. As velhas ferraduras de Haja eram feitas de um simples metal condutor, muito comum em peças e acessórios utilizados por grande parte da população. A dor que sentia fazia com que a viagem atrasasse em alguns dias, mas Sarah não estava disposta a acelerar o passo sabendo que com isso poderia perder sua companheira. Esperava chegar ao deserto dentro de algumas horas, mas, ainda que fosse de essencial importância alcançá-lo antes do cair da noite, procurou não sobrecarregar o animal.
A escuridão daquelas areias já não era um problema, pois o Segundo Astro agora fazia com que as noites em Viera pulsassem em um fraco brilho perolado. Sarah afagou a crina de prata para que diminuíssem o ritmo em que corriam, reduzindo-o a um galope. Seu coração desmontava-se ao ver as lágrimas escorrendo das amêndoas de Haja quando as patas traseiras sofriam o impacto com o solo quente que aos poucos se tornava arenoso.
O deserto ficava na fronteira de Viera com Murchado, um estado marcado pelo declive mais íngreme de todo o planeta. Esse estado era como um grande buraco de proporções absurdas, mas que a população gostava de chamar de Vale. Para descer até o fundo do Vale era preciso uma viagem de um dia quase completo, viagem essa que Sarah não poderia completar sem antes parar no deserto para cumprir com a primeira fase de sua missão.
Já tinham percorrido boa parte do caminho até a fronteira, e os músculos de Haja pareciam mais flexíveis e um pouco menos doloridos devido à diminuição do ritmo da cavalgada. A égua nascera em uma planície do mundo chamada Avia, cujos pastos e campos compreendiam os melhores criadores de animais selvagens. Pertencia à linhagem sanguínea dos Menores, uma das lendárias gerações de montarias. Todos eram criados a partir de uma técnica amplamente dominada pelos criadores de Avia, sendo passada de geração para geração das famílias dos criadores.
Sarah conhecera um criador em uma de suas peregrinações pelo mundo. Tinham caçado lêmures nas florestas da planície junto a um grupo de caçadores mercantis que participavam das festividades do local. A filha desse criador encontrava-se muito doente; estava com os sintomas da enfermidade chamada de quebra-ossos, responsável por grande parte das mortes da época. Sarah havia percorrido metade do mundo com os andarilhos e peregrinos das mais diversas culturas, tendo assim a oportunidade de aprender algumas das artes secretas que somente cada uma das culturas seria capaz de ensinar.
Aprendera com um mestre andarilho das planícies orientais uma dessas artes, chamada reconstrução. Sabia muito bem para quais fins ela servia e como deveria proceder para que ela funcionasse. Porém, Sarah nunca a havia utilizado em outros entes que não animais em processo de decomposição. A arte envolvia uma série de movimentos táteis a serem realizados sobre a pele de qualquer inválido, na tentativa de desconstruir seus tecidos viscerais inviáveis e reconstruí-los de maneira saudável.
O mestre lhe disse que a habilidade baseava-se no princípio da reorganização celular. Na ocasião ela não entendeu exatamente o que isso significava, mas resolveu continuar escutando o que ele tinha pra lhe ensinar. Não se tratava de criar novas células, explicou ele, mas sim em utilizar as propriedades já existentes nos organismos presentes em cada célula e reorganizá-las com o fim de recriar a porção prejudicada dos tecidos.
Era um processo sensitivo intenso. Sarah chegou a acreditar que nunca conseguiria dominar uma arte como essa. Deu razão ao mestre peregrino quando ele havia lhe confidenciado que só entenderia o processo real somente quando ela pudesse realizá-lo por si mesma. Sendo assim, em peregrinações posteriores ela pôde experimentar em cordados e poríferos mortos; tanto essa arte quanto outras artes e habilidades ensinadas por outros andarilhos. Com o tempo ela foi se aperfeiçoando na reconstrução, até que em Avia lhe surgiu a possibilidade de uma prática diferenciada.
A filha do criador estava muito debilitada. A quebra-ossos era marcada por um principal sintoma: a extrema rigidez do tecido ósseo do corpo. A pessoa que portava a enfermidade enfraquecia de tal forma que simples movimentos eram capazes de produzir danos letais ao endoesqueleto humano. A menina já não andava e vivia acamada. Sarah, quando soube da situação, resolveu comunicar ao criador que talvez houvesse uma chance de sobrevivência de sua filha, ainda que remota. É claro que o ato havia sido impulsivo. Ela nunca utilizara a arte em qualquer organismo vivo, muito menos em uma pessoa.
Mas o criador se tornou um grande amigo. Era o mínimo que ela poderia tentar para ajudá-lo a reduzir o sofrimento de sua filha e também o seu. Então tentou. Talvez tenha sido a experiência mais marcante de sua vida como peregrina. Dedilhou o corpo da menina, fazendo os movimentos necessários e murmurando um cântico sulino. O cântico era outra arte que ela havia aprendido em peregrinações. Sua característica principal compreendia o relaxamento de músculos e tendões; Sarah achou que talvez essa arte, combinada com a reconstrução, talvez ajudasse a apaziguar a dor que a menina viesse a sentir.
Funcionou. O processo todo havia levado horas para ser concluído, mas funcionou. Pela primeira vez em toda a sua vida ela tinha utilizado a reconstrução em um ser humano com sucesso. Até hoje a cena lhe vem à mente de forma distorcida, borrada, como se lembrasse somente de flashes de todo o período de tempo em que ficou enclausurada no quarto com a garota. A estrutura celular do tecido ósseo tinha sido completamente reorganizada. Sobre essa história o criador havia pedido silêncio. Obrigou todo e qualquer criador, peregrino ou andarilho a completar um voto de silêncio a respeito da cura que havia sido realizada. Sim, cura, pois era esse o nome que deveria ser dado.
Sarah era mesmo uma pessoa de sorte. Levar a vida como peregrina e exploradora oferecia oportunidades únicas que nunca seriam oferecidas a um mero cidadão. Ela aprendeu segredos com mestres das artes, conheceu pessoas de grande importância e, pelo caminho, adquiria bens de imenso valor. Em reconhecimento ao ato heróico que desempenhou com a filha do criador, lhe foi dada a dádiva de escolher uma lendária montaria das que ele possuía em seu próprio pasto e levá-la para acompanhá-la durante toda sua vida. Foi assim que conheceu Haja. No momento em que tinha lançado olhar ao animal, soube que seria ela a escolhida.
Haja era dona de uma pelagem única. Era clara, mas não branca, e tinha uma ondulação tal que a cada ângulo visto a tonalidade se alterava. Pensando bem, hoje Sarah poderia compará-la com o pulsar perolado das novas madrugadas, após a chegada do Segundo Astro. Suas patas eram encobertas pelos mesmos fios de seda que a crina, e as ferraduras, ainda que antigas, brilhavam como prata quando os raios do Astro comum refletiam a luz. A mesma luz agora refletia com intensidade, pois os Astros estavam a pico e ambas já se encontravam no deserto.
A população denominava-o deserto por sua maior parte ser composta pelo solo arenoso característico de qualquer deserto espalhado pelo mundo, porém, possuía uma fina camada gramínea da cor do âmbar, que se confundia com os grãos de cor intensa. Sarah não sabia dizer o porquê, mas cavalgar ali estava mais agradável que no resto do caminho percorrido até agora. O solo era macio e um pouco menos quente, Haja não lamentava enquanto cavalgava e espalhava areia pelo ar. “Finalmente chegamos ao primeiro marco”, exclamou Sarah.
Ali estava erguido um monumento de pedra escura: um belo obelisco fincado nas areias que separavam Viera do grande Vale de Murchado. Ao fundo do cenário nada se via; o solo se perdia em uma descida íngreme e difícil até o fundo do vale, que dali não era possível enxergar a olho nu. O obelisco era a primeira das 3 pedras-angulares que Sarah procurava. Desmontou Haja e pisou com certa dificuldade no tapete macio de granito. Estava acostumada ao balanço da cavalgada, que a havia embalado por tanto tempo desde então, e teria despencado rumo ao chão se não se agarrasse às correias da égua no exato momento em que seu pé vacilou.
Em meio à bagagem que traziam, Sarah se aproximou de um saco de estopa um tanto cheio e de lá retirou um livro. Era antigo; a encadernação em couro havia perdido a coloração original e o dourado que antes marcava o título “Gestuário” se desvaneceu por completo, deixando um vazio em baixo relevo onde a palavra permanecia cravada. Com cuidado ela abriu o livro na página que tinha marcado antes de iniciar a viagem, passando o olho por cima das imagens que a partir daquele momento deveriam ser transpostas para a realidade, da forma que ela aprendera com os mestres das artes em outras planícies.
Então, se desenrolou uma sequência de ações: Sarah aproximou-se do obelisco escuro, deixando Haja livre para pastar a gramínea cor de âmbar longe do marco. Tocou a superfície de pedra com a palma de sua mão direita enquanto a outra segurava o livro em frente aos olhos. Repetiu a sequência de setenta movimentos com a mão e os dedos, reproduzindo-a ao longo dos quatro lados da estrutura antes de, por fim, pronunciar a seguinte sílaba: “So”, de forma longa e quase cantada. “So”, repetiu Sarah por mais duas vezes.
Lembrava-se claramente das instruções do mestre. Deveria repetir as sílabas corretas logo depois da sequência gestual, e assim havia feito. Rapidamente guardou o livro no saco de estopa e voltou a montar em Haja, retomando o percurso sem perder mais um segundo do precioso tempo que ainda dispunham. Sarah avistou o início de Murchado, marcado pelo declive que descia até o fundo do grandioso Vale. Mais uma vez, afagou a crina da égua e sussurrou: “Agora vamos com calma”. Aquela área era completamente desconhecida para ambas.
Poucos humanos um dia se atreveram a descer até o fundo do Vale. A população daquele estado vivia em cidades construídas ao longo do declive, em patamares ou degraus. Uma dessas cidades era chamada de Cova Rasa, pois estava situada em um desses patamares, que possuía a forma côncava, como uma enorme tigela de cerâmica. Era considerada a capital de Murchado, até por ser a maior das cidades de lá e também por se localizar a uma menor distância do fundo propriamente dito.
Sarah e Haja não passariam por lá. Cova Rasa ficava do lado oposto a fronteira que tinham cruzado; do lado povoado do Vale. Passariam somente pelas áreas desertas, onde o solo era danificado e escuro, dominado por uma vegetação alta e também escura. Sarah ia tomando todo o cuidado de não deixar que a égua pisasse em alguma pedra solta ao longo da trilha que seguiam, e estava satisfeita em ver que, por mais que o caminho fosse mais difícil de ser percorrido, Haja não mais reclamava da temperatura das ferraduras.
Quanto mais avançavam para o fundo do Vale, mais os Astros deixavam de iluminá-lo. O ambiente ia escurecendo rapidamente e a atmosfera se tornava mais sombria e fria. Em compensação, ambas respiravam mais facilmente ali embaixo. O ar era fresco, limpo e enchia os pulmões de vitalidade. Caminhando assim foi fácil cobrir três quartos do caminho em poucas horas. Conseguiram atingir mais um ponto crucial daquela viagem, os últimos marcos. Ali, as pedras-angulares estavam dispostas em dupla: dois obeliscos cravados na pedra escura do Vale, cada um apontando para uma direção.
Ali embaixo os obeliscos eram feitos da mesma pedra escura que o anterior e, devido a pouca iluminação, pareciam ter também a mesma coloração do solo ao redor. Mais uma vez Sarah desmontou e retirou o velho livro de dentro do saco de estopa. Aproximou-se do segundo obelisco, repetindo o gestual realizado mais cedo, dessa vez cantando a sílaba “Ra” três vezes. Feito isso, foi até a terceira e última estrutura, repetiu os gestos e pronunciou “Ya”. De início nada aconteceu. Porém, Sarah sabia que estava no caminho certo, pois a energia que agora respirava junto com o ar lhe trazia vitalidade. Reparou que Haja também sentia.
Fechando o livro com convicção, Sarah tornou a guardá-lo e prosseguiu caminhando ao lado de Haja. Em poucos minutos chegariam ao destino final daquela viagem longa e cansativa. O caminho estava ainda mais escuro e afunilado, deixando o ambiente inundado em uma densa penumbra. Sarah reparou que bem ao longe, bem acima e lá do outro lado do Vale, ela até conseguia ver as luzes de Cova Rasa começando a ser acesas devido ao rápido cair da noite. Mesmo que agora o Segundo Astro iluminasse as madrugadas, as pessoas que viviam em Murchado permaneciam prejudicadas pela falta de luz, mas ninguém reclamava.
O terreno, então, terminou em uma abrupta inclinação que delimita o fundo do Vale propriamente dito. Era a primeira vez que Sarah pisava ali. Não sabia dizer quantas pessoas um dia haviam pisado naquela terra negra, mas sabia que eram poucas. Cerrando os olhos para tentar enxergar melhor na escuridão, ela percebeu que o fundo do Vale era rodeado por vários obeliscos como os anteriores. Eles formavam um círculo de pedras que rodeava um pequeno monte que se erguia bem no meio. Tal monte não era muito alto; devia ter a altura de três pessoas, talvez.
Seguindo sempre com Haja a seu lado, ela começou a pensar nos enigmas que aquelas terras deviam esconder. Haviam nichos esculpidos em cada obelisco, que pareciam ser três vezes maiores que os outros encontrados pelo caminho. Sendo assim tão altas, era curioso pensar em como ela não avistara as estruturas enquanto descia, bem como o monte em si, e só pôde vê-los assim que pisou no terreno. Balançou a cabeça tentando afastar os maus pensamentos e procurou focar nos bons na missão que a havia trazido até ali.
Aproximou-se então do pequeno morro de pedra e tateou à procura de uma entrada. Encontrou-a facilmente quando percebeu que estava tocando em uma superfície muito lisa e extremamente gelada, fazendo com que Sarah retirasse a mão rapidamente. Não possuía maçaneta ou qualquer dispositivo externo que auxiliasse na abertura, porém Sarah sabia o que deveria fazer para abrir. Esfregou as mãos uma na outra para aquecê-las e tocou a superfície com as palmas. Procurou relaxar os músculos do corpo todo, pendeu a cabeça para frente para soltar o pescoço, respirou fundo e cantou: “So... Ra... Ya...”. Respirou fundo mais uma vez e continuou: “So... Ra... Ya...”. “Soraya”, chamou por fim.
A placa lisa se desfez. Então, tudo estava dando certo. Sarah pegou as rédeas de Haja no chão e as duas entraram pela passagem que se abriu. Não sentia medo, apesar da escuridão que agora reinava. Passo a passo elas foram prosseguindo pelo caminho aberto. Passo a passo elas chegavam mais perto do núcleo do morro, consequentemente do ponto mais fundo do Vale.
Seguindo sempre em linha reta, encontraram uma segunda passagem, vazada, que se abria para um cômodo iluminado. Sarah reparou que o cômodo era como uma caverna circular cujo teto sustentava-se em grossos pilares. Reparou também que havia uma abertura no centro teto da caverna, por onde passava um feixe de luz perolada, a mesma luz que o Segundo Astro emanava. O feixe não encontrava o chão logo abaixo, mas se perdia em um buraco aberto nele, seguindo a mesma direção.
Aproximando-se dele, mais uma vez ela deixou a mente vagar pelos pensamentos obscuros. Perguntou-se qual seria a profundidade daquilo. Olhou ao redor procurando por uma pedra para jogar lá embaixo, mas não encontrou. Então, foi até o saco de estopa que Haja carregava e de lá retirou uma grande maçã, a qual serviu a seu propósito. Bem, quase. Sarah não ouviu o momento em que a maçã atingiu o fundo do poço. Afastou as ideias e deixou a curiosidade de lado novamente.
“Soraya”, chamou novamente. “Soraya, peço que apareça”.
Haja relinchou. Sob os pés, Sarah sentiu uma leve vibração que aos poucos se transformou em um tremor crescente. Ela só percebeu a presença do silêncio quando este foi quebrado por Haja e pelo som de água abundante, como se estivesse sendo despejada em uma bacia de cerâmica. A água que ouvia rapidamente surgiu através da escura abertura no centro da caverna e vinha trazendo a maçã boiando em sua superfície. A fruta esbarrou em uma série de degraus concêntricos que Sarah não havia reparado antes, enquanto o nível da água subia.
Haja se desequilibrou por um momento quando o fluxo atingiu suas ancas com força, mas Sarah ajudou a égua a se reerguer enquanto tentava salvar a bagagem de ser ensopada. Depois de algum tempo – ela não soube calcular quanto – a água parou de subir e deixou ambas imersas até a cintura. O silêncio retomou seu espaço e o tremor cessou por completo. Antes que Sara tivesse tempo de abrir a boca para chamar pelo nome Soraya, algo fez com que a superfície da água se quebrasse em pequenas ondas enquanto ia emergindo do buraco agora escondido.
Era Soraya. A presença daquela entidade encheu os olhos de Sarah, que não soube segurar a emoção e deixou escapar uma lufada de ar quando levou as mãos à boca. Então a lenda era mesmo verdadeira. Soraya existia e estava ali, bem de frente para ela. Se pedissem para que ela descrevesse a entidade, não encontraria palavras suficientes. Era feita da água em que emergia, mas não era. Era feita do ar que respirava, mas não era. Era feita da pedra que a rodeava, mas também não era. Emanava aquela luz perolada, mas ao mesmo tempo era impossível enxergá-la com nitidez. Parecia não ter feições, embora possuísse um corpo humanóide. Não vestia roupas nem estava nua. Nem ao menos podia se afirmar que era uma presença feminina. Porém, ali estava ela. Soraya, a mãe do mundo. Criadora de todas as coisas. E também a destruidora.
Sarah demorou até conseguir pronunciar a primeira frase completa: “Por que o fundo do Vale?”, perguntou. Que tipo de pergunta é essa?, logo pensou. Foi tudo o que lhe veio à mente. Mente traiçoeira a dela, que se esquecia da missão com a mesma facilidade que formulava perguntas e teorias. “Aproxime-se, Sarah, sim. Chegue mais perto do que te intriga, sim”. Ela obedeceu. Pegou as rédeas de Haja e ambas aproximaram-se da entidade que pairava acima da superfície da água.
“Sou So. Sou Ra. Sou Ya. Sim. Sou água e ar e pedra. Sim. Sou aquela que cria, aquela que destrói. Sim. Você conseguiu chegar até mim, Sarah. Sim, você conseguiu. Dos viventes você é o terceiro que me alcança, sim. É a terceira alma que se prontifica a descer até o fundo da mente. Pois, sim. Você deve ter percebido que está em paz, sim. Seu mundo sofre com a chegada de um estranho, e você agora está em paz. Sim, você está em paz.”
A voz de Soraya se dividia em múltiplas vozes femininas, masculinas, maduras e infantis. Nela conseguia perceber seu pai, sua mãe e suas irmãs. Conseguia perceber seus mestres das artes, o criador de Haja, os peregrinos e os andarilhos. Por um momento até pensou que ouvia a si mesma a cada “sim” pronunciado.
“Não esqueci de sua pergunta, não. Lembro-me dela. Os entes chamam essa terra de Vale, de Murchado. Mas, não. Não é um vale. Mas, não sei se posso dizer o que é.”
“Por que não? Se não é um vale, o que é? Peço, Soraya, me diga.”
“Pede, sim. Mas não sei se digo. Você não veio aqui para isso, veio? Você não veio aqui para fazer perguntas, ainda que procure uma resposta. Sim, você procura uma resposta.”
Ela tinha razão. A missão não se tratava de uma busca por respostas às perguntas de sua mente curiosa. Precisava focar em seu objetivo.
“Desculpe”, respondeu. “Realmente não estou aqui para isso. Soraya, o povo de nosso mundo precisa de sua ajuda”.
“O Vale é uma cratera. Aqui caiu o cometa da Panspermia, trazendo vida.”
Sarah hesitou. “Disse que não me responderia...”
“Que ajuda quer de mim?”
“Uma cratera? Cometa da Panspermia... O que é isso?”
“Que ajuda quer de mim, Sarah. Sim?”, repetiu a entidade.
Era difícil seguir Soraya. Ela parecia completamente ilógica.
“O Segundo Astro... Vem causando inúmeros problemas para a população.”
“Quais problemas, sim?”
“Bem... O calor que ele gera está superaquecendo as plantações de pomarias e ginecéias em várias das planícies do mundo. O solo está armazenando tanto calor que alguns rios e lagos estão evaporando... Muitos deles são essenciais para a subsistência de alguns vilarejos... E também, as grandes cidades que possuem asfalto férreo estão perdendo veículos motorizados devido aos pneumáticos queimados... Eu lhe mostraria as solas de meus sapatos se já não estivessem molhadas. O mundo está queimando, Soraya.”
“O mundo está queimando, Sarah.”
Dizendo isso, as vozes da entidade se calaram. Sarah ainda estava com Haja a seu lado; a égua permanecia quieta e com a cabeça baixa, relaxada pela refrescância da água que as envolvia. “Por favor, peço que nos ajude. Faça algo por nós...”
“Porque pensa que posso fazer algo por vocês?”, lançou.
Sarah não precisou pensar para responder. “Bem... A lenda lhe denomina como a mãe de todas as coisas, a criadora e destruidora de tudo, como você mesma disse há pouco...”
“E o que você pode fazer por todos, Sarah?”
“Eu? Nada além de completar essa viagem em busca de Soraya, que acabei por encontrar. Passei fome e sede por dias a fio, queimando as solas de meus sapatos e as ferraduras de minha companheira somente para chegar até o fundo do Vale e lhe encontrar.”
“Os homens escreveram uma lenda sobre mim. É certo, sim. Houve Marcus, o primeiro dos entes que aqui pisou, sim. Ele levou algo que era meu. Sim, levou algo que era meu. Escreveu a lenda, sim. Há milhares de anos atrás. Foi o primeiro ente a descobrir o Vale. Sim, Marcus foi o primeiro”. As vozes continuavam ecoando pela caverna imersa em água. Os pilares molhados pareciam pulsar em vida e o feixe de luz continuava a entrar pelo círculo no teto, ainda que lá fora a noite já tivesse caído. As vozes continuaram: “Depois veio Solomon. Sim, Solomon, o segundo. Entrou por essa mesma porta que a terceira entrou, sim. Veio pedir misericórdia, mas não cedi. Ah, não. Não cedi. Solomon era egoísta. Sim, egoísta. Agora... Sarah. Você. O terceiro ente. Não é egoísta. Não, não é egoísta. Pede por misericórdia, sim. Irá levar algo meu, sim. Sim, irá levar. Pede por misericórdia, mas não é egoísta. Não, não é. Pede por misericórdia em nome de todos, e não somente em nome de Sarah. Sim, em nome de todos. O terceiro ente não é egoísta.”
Sarah já não sabia o que esperar da entidade. Tinha chegado até ali com o propósito de pedir ajuda, mas não sabia o que a esperava. É claro, não poderia ter esperado por uma santa, uma alma milagrosa que iria ceder a qualquer pedido humano. Porém, Soraya era muito diferente de qualquer coisa que pudesse ter pensado em encontrar. A lenda dizia que ela se mostrava através dos elementos de pleno conhecimento para aquele que a buscava. Isso fazia certo sentido, visto que eram todas as pessoas da vida de Sarah que davam voz à entidade. Perguntou-se então de que forma Haja estaria presenciando-a.
“O que você pode fazer por todos, Sarah, você já fez. Sim, você já fez. Gastou do solado de seus sapatos visando encontrar caminhos desconhecidos a qualquer ser humano. Dispôs de seu tempo em vida para sair em busca de uma solução comum a todos, preocupando-se com problemas alheios, ainda que você também tenha os seus. Sim, você tem. Vejo em você grande generosidade. Sim. Porque o terceiro ente não é egoísta. Não, não é.”
Sarah esperava pacientemente. As vozes continuaram:
“Tudo tem um preço, porém. Daqui você sairá com algo que é meu, assim como eu levarei algo que é seu. Às vezes para criar, é preciso primeiro destruir. Sim, destruir. Você diz que sou a mãe que tudo cria e tudo destrói. Sim, eu sou essa mãe. Crio e destruo. Faço, desfaço. Viver exige sacrifícios, você bem sabe. Sim, você sabe. Eu posso acabar com o sofrimento da população deste mundo, sim. Posso acabar com o sofrimento que o estranho está causando, pois também sou a mãe que destrói. Para isso, tomo-te Haja.”
Nesse momento Haja desabou na água, sem movimentos. Sarah arregalou os olhos para a companheira imóvel e lançava o olhar entre ela e a entidade sem saber o que fazer. Forçou as pernas através das águas caminhando para onde a montaria jazia de olhos fechados, fazendo de tudo para que fosse reanimada. Notou que ela já não tinha pulsação. Era como se Soraya tivesse apertado um botão de desligar. Tudo estava parado. Sarah demorou a lembrar-se que possuía artes secretas que já dominava, e num impulso começou a realizar o gestual de uma reconstrução nas têmporas de Haja.
Mas, já nos primeiros gestos ela viu que não funcionaria. A égua da linhagem dos Menores não estava com nenhum tecido danificado. A reconstrução não surtiria efeito. Ainda que a mente racional lhe comprovasse tal fato, não parou de executar os gestos. Em desespero, interrompeu um cântico sulino para gritar por ajuda à entidade, mas Soraya já não estava mais ali. A água escoava pelo buraco de onde viera e levava consigo aquela maçã, já apodrecida. O desespero tomou conta do corpo todo de Sarah, que correu até o buraco no centro da caverna para gritar por Soraya.
“Soraya! Volte! Por misericórdia, volte!”
Mas nada que dissesse a traria de volta. O encantamento que unia as pedras angulares ao pequeno monte agora já estava desfeito. Quando a água escoou por completo, deixando pequenas poças ao redor, o buraco no centro da caverna tinha se fechado. O feixe de luz perolada que antes não iluminava nada, agora tornava bem visível um objeto que tinha sido deixado por Soraya. Era uma ferradura de ouro maciço. Sarah tomou o objeto e colocou-o entre as mãos unidas. Era quente. Assim como Haja um dia fora.
Então, era aquilo que Soraya deixava para ela. A vida de Haja enclausurada em uma ferradura dourada. Lá fora, o Segundo Astro se afastava lentamente do mundo. Sua órbita giraria em outros sistemas. As vidas nas planícies voltariam a ser como antes eram. Sarah, o terceiro ente, o ente generoso e não egoísta, tinha cumprido sua missão. Deixara algo com Soraya e sairia dali com algo dela. As lágrimas rolavam pelas faces de Sarah, mas nunca soube dizer se eram de tristeza ou alegria. Havia perdido Haja, entendia isso. Mas era como se tivesse perdido uma parte de si também.
Virou-se para olhar o corpo imóvel da montaria e notou que ele já não estava mais ali. Havia sido levado também. Devagar ela caminhou até a saída do pequeno monte, perguntando-se quem é que a levaria de volta à sua planície, agora que Haja já não mais existia. Olhou então para o céu, para onde jazia o Segundo Astro e perguntou se valeu a pena. Por um momento, permitiu-se ser egoísta. Levou a ferradura dourada ao peito e, abraçando-a, chorou.


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