Bipolar
- jeffpavanin

- 4 de ago. de 2014
- 9 min de leitura

– Venha aqui e me responda uma coisa – pedi naquela manhã de domingo. Estávamos em um abrigo montado pela guarda costeira bem do lado oposto ao litoral da cidade devastada. O amontoado de pessoas não me deixava respirar direito e as coisas não estavam muito bem entre nós. Era meu terceiro dia naquele local. – Você vem ou não vem? – insisti. Eu estava de bom humor, juro que estava.
– Não sei. Tenho porque ir? – respondeu ele. Vestido com a mesma roupa que estivera ontem e no dia anterior a esse, Lionel olhava para meu rosto sem estabelecer contato visual direto. Sentado em uma das cadeiras disponibilizadas pela diretoria do colégio que agora servia como abrigo, ele parecia tão inofensivo como no dia em que nos conhecemos. – Não quero brigar com você logo cedo hoje.
– Eu também não quero brigar. Só quero te fazer uma pergunta.
– Então faça! – ele gritou gesticulando.
Revirei os olhos para o céu e desisti de tentar. Sem nem ao menos continuar o diálogo, dei meia volta e fui de encontro à saída do colégio. Alguns homens montavam guarda na frente da grade carcomida de ferrugem por causa da água. Quando cheguei, um deles me pediu identificação:
– Nome e idade, por favor.
– Soto, 22 anos – respondi. – É meu dia de buscar suprimentos.
Sem pestanejar, o homem abriu a grade para que eu pudesse sair. Eu sabia que Lionel viria atrás de mim, pois não podíamos sair do abrigo sem pelo menos um acompanhante. De esguelha observei o guarda deixá-lo passar pela grade enquanto eu pegava uma das bicicletas jogadas no chão.
– Espera – ele quase gritou, pegando também uma bicicleta.
Pedalei sabendo que Lionel me seguiria por onde eu fosse, e foi pensando nisso que segui pelo cruzamento, desviando-me da rua na qual deveríamos virar. O local de armazenamento vitalício ficava a algumas quadras do abrigo e toda semana pessoas se revezavam para buscar alimento e provisões para todas as famílias abrigadas. O revezamento era uma forma de evitar favoritismos. Segui pedalando até a costa, onde um pedaço do mar já podia ser visto através dos prédios e casas. Ou pelo menos o que sobrara dele. Quando parei em uma mureta de frente para a praia, Lionel parou ao meu lado.
– Estamos em área proibida – disse ele.
– Não ligo. É aqui que quero estar agora.
Lionel deu de ombros e olhou para o mar. As águas enegrecidas e o horizonte devastado davam ao mundo uma cara nova e triste. As tropas de Agathon haviam reduzido a população mundial pela metade desde o início da guerra, há alguns anos. Tudo o que restara da Terra eram destroços e ruínas. Não era particularmente fácil viver na Califórnia em épocas como essa, pois o governo americano havia se dissolvido por completo e a sociedade vivia sem poder legislativo algum. Não havia regras. Não havia líderes. Nosso grupo prezava a democracia e era por isso que o favoritismo era evitado. Eu deveria pegar as provisões e voltar ao colégio, mas às vezes me permitia dar um pequeno passeio. Lionel começou a falar sem desviar os olhos da paisagem.
– Acho que devemos voltar.
A atitude super correta de Lionel me irritava.
– Pare com isso. Não me interessa se vão brigar comigo por ultrapassar a linha.
– Vão te proibir de sair.
– Que proíbam. Ninguém pode controlar minhas atitudes.
– É, pelo jeito não – disse. Após alguns segundos resolveu mudar de assunto: – Porque você acha que as tropas de Agathon não patrulham nosso país?
Era a primeira coisa interessante que eu ouvia sair da boca dele.
– Eles nunca tiveram interesse em sociedades decadentes. Não é a toa que se instalaram na Rússia. Meu avô disse que o objetivo dos líderes de Agathon não é dominar nosso planeta, mas destruí-lo. A razão disso tudo eu não sei.
– E por causa desses invasores somos obrigados a viver em uma sala de aula.
– Só vivemos nesses abrigos porque nossas famílias estão lá. Se eu quiser posso fugir e me instalar em uma cidade melhor. A costa nunca foi uma opção inteligente, eu acho. A última onda alagou toda essa área e as pessoas insistem em ficar aqui – respondi.
Lionel olhou para mim.
– Eles não vão atacar mais. Ou vão?
– Creio que vão. A guerra não acabou. Nós estamos vivos. Podemos não ser uma sociedade avançada, mas a América tem grandes chances de se reerguer, se quiser. Mas não é isso que eles querem. Acho que enquanto a população do mundo não for reduzida a zero, Agathon vai continuar atacando.
Lionel não parou de olhar para mim. Sua expressão era de espanto.
– Como que você sabe essas merdas todas?
– Meu avô fala muito sobre isso. Desde que as pessoas desse planeta estranho souberam da nossa existência, têm lutado para acabar com a gente. Só não sei por qual motivo. Acho tudo uma grande bosta, se quer saber.
Finalmente ele voltou a olhar para o horizonte devastado, assim como eu. Essa cidade ficava entre uma baía muito grande, dando a impressão de que uma enorme bolha de água tinha engolido metade da cidade. Do outro lado das águas escuras era possível observar as silhuetas de muitos prédios destruídos e bombardeados. Apesar de expressar toda a desgraça pela qual o mundo atravessava, eu gostava dessa visão. Passava a impressão de como somos insignificantes. Foi só uma sociedade superior fazer contato para que tudo aquilo que conhecíamos fosse posto por água abaixo. As bombas nucleares que lançaram eram de um poder muito superior à dos japoneses, que era a mais potente que nosso planeta conhecia. Meu avô realmente me contou muitas dessas coisas. Se eu parasse para pensar em tudo, até achava que algumas poderiam ser interessantes. Mas o meu maior desejo era ter minha vida de volta.
Lionel pegou a minha mão.
– Você tinha uma pergunta a me fazer – disse ele.
– Sim. Eu queria voltar a fazer faculdade. Queria voltar a ouvir música. Queria ler sem precisar acender uma vela fedida e comer algo que não fosse enlatado. É tudo uma merda aqui, Lionel. Isso me cansa.
– Soto, você não vai conseguir fazer essas coisas em outro lugar. Nem se você morasse na Rússia.
– Dizem que em Nova Iorque há um grupo resiliente. Lá eles comem fast food, de alguma forma, e têm vodka e refrigerante. Lá eles têm uma sociedade mais organizada. Abrigam-se em hospitais e casas suburbanas, onde têm melhores condições de sobrevivência. Dizem que conseguiram converter vento em energia elétrica, Lionel. Imagine assistir a DVDs, depois de anos! E eu nem me lembro de como deve ser dormir em uma cama de verdade. Deve ser uma benção.
– Tudo isso não passa de boato. Você não vai cair nessa!
– Vamos fugir.
Ele riu.
– E você pretende atravessar o país andando?
– Não sei. A gente dá um jeito. Muitas pessoas estão pensando em ir pra lá. Podemos seguir o fluxo. Sair da sombra de nossas famílias. Podemos viver felizes, só eu e você. Vamos, Lionel. Eu te amo. Fuja comigo.
– Parece encantador, mas você está delirando. Vamos voltar.
Dessa vez foi ele quem saiu pedalando na frente. Tive de seguir. Ele foi direto para o galpão que servia como depósito vitalício. Eu pedalava com raiva aparente, porque ele não queria acreditar em mim. Tudo o que saía de minha boca soava como lorota para ele. Era irritante. Talvez eu devesse fugir sozinho e tentar buscar por uma vida melhor. Se meus pais não me aceitavam e Lionel não confiava em mim, o que eu teria a perder? Tudo era uma desgraça. Eu comia feijão em lata e dormia no chão somente com uma cobertinha pra me proteger. Minha irmã me olhava com cara de cu e meu avô só resmungava. Minha mãe sofria e chorava soltando gritinhos de desespero a cada volta do relógio enquanto meu pai gritava para que ela calasse a boca. Sem contar que tudo o que eu tocava estava meio molhado e cheirava a mofo. Realmente a costa não era lugar para mim.
Ajudei Lionel a encaixotar mais latas e cobertores na garupa da minha bicicleta enquanto ele trocava palavras com o garoto que anotava as rações que iam para os abrigos. Eles estavam trocando sorrisos e olhares. O lápis saía e entrava atrás da orelha do rapaz sempre que ele achava necessário jogar um charme pra cima do que era meu. Era assim toda vez. Agiam como se eu não estivesse ali. Era insuportável. Joguei uma caixa nos braços de Lionel e mandei que ele colocasse em sua bicicleta. Virei de frente para o rapaz, que usava um macacão jeans por cima de uma blusa amarela ridícula.
– Tome cuidado, garoto das rações. Anote isso aí no seu bloquinho.
Meu dedo indicador cutucou o peito mirrado do menino quando ele desviou os olhos para riscar sua checklist. Foi com um bico enorme que eu voltei para o colégio na frente de Lionel, sem me preocupar se eu pedalava rápido demais. Foi só quando entregamos os suprimentos para as mulheres que cuidavam da distribuição que eu voltei a falar com ele. Sustentava uma careta de bobo alegre que só serviu pra me irritar ainda mais.
– Você pensou no que eu disse? – perguntei.
– Soto, para de graça. Eu gosto da vida aqui. Eu gosto da minha família. Adoro meus cachorros. Como essa ração todos os dias e já me acostumei com ela. Eu não posso fazer nada se você tem problemas em se conformar e tentar ser feliz.
Aquilo foi a gota d’água.
– Vai tomar no seu cu. Você só quer ficar aqui por causa daquele rapazinho. Faz tempo que você vem me irritando. Parece de propósito.
– De propósito? Minutos atrás você disse que não queria brigar e até chegou a dizer que me amava. Não te entendo, Soto, sério. Você não é coerente e só pensa besteira. Eu e Eric somos só amigos.
– Você sabe o nome dele? É pior do que eu pensava.
– Ele usa um crachá, seu imbecil.
Terminei a conversa com um: – Foda-se.
Fui me emburrar no pátio que ficava atrás do ginásio. Acendi um cigarro e traguei aquele fumo como se o tabaco fosse a última merda que pudesse me satisfazer na vida. Eu tossi quando a fumaça em demasia queimou minhas vias respiratórias. E foi assim que Lionel me encontrou, sendo refém de um vício que eu nem tinha. Ele me pediu um cigarro.
– Eu não quero escutar o que você tem a falar sobre aquele animal – joguei.
– Nem vou falar sobre o Eric.
– Eric, Eric, Eric.
– Cala a boca, Soto.
– Eric, Eric, Eric, Eric, Eric, Eric, Eric! – Eu estava gritando.
– Cala essa sua boca!
Nem senti a dor do soco. Nem liguei pro filete de sangue que escorria de algum lugar. A dor física foi embotada pelo pavor que eu senti ao ser arremessado para trás com a força do punho de Lionel. Eu não cheguei a cair, só dei uns passos para trás, mas o abismo que se abriu entre nós dois foi o suficiente pra me jogar para o fundo daquilo tudo. Eu não soube como reagir, só me dei conta de que estava encarando Lionel quando ele mesmo espantou-se com o que tinha feito. Ele tentou remediar, relutando em levar suas mãos ao meu rosto, mas eu só consegui empurrá-lo para longe de mim.
Voltei ao ginásio quase chorando de raiva e me deparei com a mesma cena deplorável de sempre. Minha mãe resmungava com minha irmã e meu avô resmungava com o meu pai, os quatro em um coro formado exclusivamente para me irritar. Mas percebi que eu também resmunguei quando Lionel correu atrás de mim e se juntou ao coro, gritando lamúrias arrependidas. Toda a cena era tão ridícula que as pessoas até pararam para observar e sussurrar uns aos outros. Minha raiva por tudo aquilo sufocou meus pulmões até explodir em um grito desesperado que serviu para chamar atenção de todos no ginásio. Eu devia parecer um louco saído do hospício mais próximo, porque segurava meus cabelos como se meu cérebro todo fosse derreter.
Saí correndo daquela cena e peguei uma bicicleta sem ao menos informar os homens de que eu iria sair. Pedalei até a ponta mais distante da praia negra, onde o amontoado de entulho era ainda maior, e me escondi atrás de um muro de concreto. Ali deixei minhas roupas e pertences antes de me dirigir às águas turvas, tremendo de frio ao sentir o vento gelado em minha pele. Ainda dominado pela loucura e sem saber o que exatamente eu queria, deixei que o sal e a sujeira lavasse minha alma, torcendo para que eu pegasse uma infecção generalizada que poderia facilitar a vida para todo mundo. Mas aquilo também era ridículo. Só me dei conta depois que parei de sentir minhas extremidades. Eu já não respirava. Porém, antes que eu pudesse me entregar ao frio, senti que alguma coisa me puxou para trás e para cima, cambaleando para fora da água, carregando meu corpo sem forças. Desmaiei.
Acordei com algo quente tocando os meus lábios. Alguém me beijava. Mas a sensação era estranha, como se algo quente estivesse corroendo meu peito, subindo de repente, em um estado de fervor. Eu vomitei uma torrente de água podre na areia ao meu lado e imediatamente retomei a consciência. Lionel estava molhado dos pés à cabeça e respirava como um porco no cio. Tentei me sentar e ele me ajudou; só assim pude notar que ele havia tirado a própria camisa e usado para tapar o meu sexo. Havia pessoas observando. Elas continuavam a sussurrar umas para as outras. Talvez agora eu fosse a piada mais engraçada da semana, talvez da história. Ele olhou para mim com aquela expressão ao mesmo tempo reprovadora e acolhedora que só ele conseguia fazer.
– Você é um idiota – ele disse.
Eu não consegui ficar bravo. Só conseguia pensar em uma coisa.
Em como eu amo esse desgraçado.


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