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Insânia

  • Foto do escritor: jeffpavanin
    jeffpavanin
  • 26 de jan. de 2014
  • 7 min de leitura

Aviso: Contém linguagem adulta. Não recomendado para menores.


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Lisa abandonou a chaleira no fogão para ir fechar as persianas. Há dias desconfiava que alguém pudesse estar lhe observando. Era difícil conviver com uma presença não identificada o tempo todo, sentia em sua pele. Era angustiante. Lisa sentia-se exposta de todas as formas, sabendo de que um simples banho pode se transformar em malícia através dos olhares errados. Essa era a pior parte. Gabriel brincava com o cabo de uma panela no fogão quando ela retornou à cozinha pra desligar a água já fervida. O moleque por pouco não despejou óleo quente na cara e no corpo.

“Sara! Vem cuidar da tua cria!”, gritou para a filha. Sara entrou na cozinha vestindo somente as roupas de baixo, com um baseado entre os lábios. “Apaga isso, inferno! Pega esse moleque e some daqui.” Tentou ignorar os resmungos da garota quando viu um homem nu aparecer e abrir a geladeira como se o aposento estivesse vazio de mulheres. “O que é isso?! Quem é você? Pelo amor de deus!”. Lisa avançou e uma chuva de surras deixou as costas do homem vermelhas e com vergões. Ele gritou a cada soco e tapa e tentou contra-atacar, mas Sara entrou em defesa da mãe e acabou levando um esporro na cara ela mesma.

“Depois a gente conversa! Vai embora!”, gritou Sara para o homem. A criança voltou a brincar com o cabo da panela no fogão, não dando atenção à cena que se desenrolava. O homem acabou subindo as escadas e rapidamente voltou tapando o sexo com as próprias roupas emboladas. Saiu pelado da casa e deu partida em um carro parado de atravessado no jardim. Lisa estava possessa. Passava as mãos no rosto, descontrolada, não querendo acreditar no que tinha acabado de acontecer. Que desrespeito! E logo de manhã... Ela ficou parada no espaço entre a sala e a cozinha, assistindo a filha fechar a porta da casa.

“Você ficou louca? Filha de uma...! Jesus! Trazer um desconhecido pra dentro de casa? Pega teu filho e some da minha frente! Você não sabe o tipo de gente que tem aí fora! Some daqui!” Continuou resmungando enquanto a filha arrastava Gabriel pelo pulso escada acima. Nem se importava mais em terminar o café preto. Despejou a água quente na pia e jogou a chaleira junto da louça suja. Lisa não aguentava mais. A vida era cheia de problemas pra sua cabeça pequena processar; eram muitos pensamentos, paranoias.

Ela sentiu a familiar pontada na cabeça quando parou pra raciocinar. Achava que estava ficando louca. Foi até a gaveta da cozinha e pegou três comprimidos que engoliu a seco. A pontada logo passaria e tudo voltaria ao normal. Estava acostumada. O que mais queria no momento era que a visão do homem e de seu membro enorme sumisse de sua mente. Perguntava-se se alguém estaria vendo e ouvindo tudo o que acontecia. Ela podia sentir que sim. Podia sentir a presença daquele olhar insuportável que lhe eriçava os pelos da nuca a cada vez que escutava o silêncio. Era como se estivesse prestes a enxergá-lo quando virasse repentinamente para trás, pegando o sujeito de surpresa, mas nunca havia ninguém.

O que levava uma pessoa a espionar a vida alheia quando podiam estar trepando, comendo, bebendo ou fazendo qualquer outra coisa que desse prazer? Por que não iam xeretar a vida de outra vizinha? Lisa ia pensando nessas coisas conforme a pontada passava. Sentou no sofá, esperando relaxar, quando Sara desceu as escadas bufando de raiva. Havia passado a maquiagem escura que a deixava parecer uma gótica horrível e usava enormes pulseiras prateadas que tilintavam quando andava. Pelo menos agora vestia alguma roupa. A observou ir até a cozinha, pegar um resto de algo na geladeira e beber alguns goles de suco direto da caixa. Lisa observava a atitude da filha, que saiu apressada pela mesma porta que saíra o homem há pouco.

Lisa foi até a janela e espiou entre as persianas, tomando cuidado pra não ser notada. A filha seguiu a pé por toda extensão da rua e virou a esquina, perdendo-se de vista. Provavelmente iria atrás do cara pra terminar o que tinham começado antes, era só no que Lisa conseguia pensar. Ela continuou observando a rua, as pessoas que ali passavam e o que elas faziam. Na casa da frente, um senhor regava seu jardim com muito cuidado. Ao lado esquerdo um carro saía da garagem. Um casal passava correndo enquanto lançava olhares de desdém para as casas ao redor; certamente não eram daquela região. Outra vizinha se balançava em uma cadeira, fazendo tricô.

Estava prestes a deixar a janela e seguir pra sua televisão quando começou a sentir a presença mais uma vez. Depois, a pontada. Levou a mão à cabeça em reflexo à dor e fez uma careta de desconforto. O que tinha ali, atrás daquele arbusto? Abriu um pouco mais o espaço entre as persianas pra ver se conseguia enxergar melhor e notou que havia sim alguém ali. Apesar de sua visão estar um pouco enevoada devido à presença ruim que sentia, conseguia ver claramente a silhueta da pessoa. Era de um homem, estava parcialmente oculto pelo grande arbusto que ornamentava a maior casa da rua, um sobrado em preto e branco que pertencia aos Correa. Mas os Correa estavam fora da cidade, todo mundo sabia.

O homem vestia um terno escuro, Lisa não soube dizer ao certo se era preto ou azul, e usava óculos de aros redondos. Ela também não soube identificar a expressão do homem ou traços específicos de sua fisionomia; ele estava longe, do outro lado da rua e a metros mais para sua esquerda. Era difícil identificar qualquer detalhe, mas assim que Lisa soube que o que sentia era real, seu sangue gelou e um calafrio lhe percorreu a espinha. Ela abafou um grito com a mão quando o homem se movimentou, levando um de seus dedos aos lábios em sinal de quem pede silêncio. Era como as enfermeiras nos cartazes do hospital em que trabalhava. Mantenha o silêncio, ele pedia.

Lisa se desestabilizou e precisou se apoiar no beiral da janela pra não desabar.

Fechou as persianas rapidamente e foi fazer isso com o resto da casa, seguindo de janela à janela, fechando as cortinas e os trincos, repetindo o processo com o tranco da porta da frente e a dos fundos. Lisa subiu as escadas meio correndo meio andando, gritando de medo, e trancou-se em seu próprio quarto. Prendeu a respiração e ficou a escutar os carros passando na rua, esperando, somente esperando. Deitou a cabeça em seu travesseiro sem querer pensar no homem de óculos que se escondia em meio ao arbusto, mas também sem conseguir tirar a imagem da cabeça. Lisa estava longe de se acalmar. Ofegava sem notar que sua respiração tinha se encurtado demais devido ao susto, que fora somente o primeiro.

Uma batida na porta a fez emergir dos pensamentos paranoicos, levando-a a soltar o grito mais intenso que dera em toda sua vida. Seus pulmões soltaram toda a quantidade de ar que era possível armazenar e as cordas vocais se arranharam quando ela gritou, levantando-se da cama com um grande sobressalto. Era quase o início de um infarto. Seu coração disparou, os membros fraquejaram e ela despencou no chão, fraca, mas sem desmaiar. A batida continuou, cada vez mais forte e fora de ritmo. Lisa só conseguia pensar no homem de terno, só conseguia pensar na porta de sua casa arrombada e na presença ruim, que agora se fazia muito, muito forte. Ela sentia cheiro de enxofre, como se do homem emanasse algo demoníaco.

Quando as batidas cessaram, Lisa escutou passos se distanciarem da porta de seu quarto. Ela não soube dizer se o homem havia descido as escadas ou se rumara pra outro cômodo da casa, mas se permitiu sentir um alívio momentâneo. Era tão assustador saber que todos seus temores agora eram reais! A presença que sentia todos os dias ao tomar seu banho, ao sair de casa pra ir até a farmácia ou à padaria, ao brigar com a filha e com Gabriel. Que dia era aquele? Primeiro um homem nu em sua cozinha, a briga com a filha, e agora isso. Era demais pra ela lidar em menos de meia hora. Lisa escutou uma conversa baixa, uma voz aguda, de criança, resmungando algo. Gabriel! Sara havia saído de casa sozinha e deixado Gabriel em casa, sozinho, lá embaixo.

Agora que o homem estava andando por aí, Gabriel poderia estar em perigo. Apesar de Lisa não gostar do garoto remelento, não podia deixar que o dono dos olhares invasivos, o voyeur de terno, acabasse com os elementos que hoje faziam parte da vida que conhecia. Lisa demorou cerca de um minuto pra decidir se abria ou não a porta, se saía em busca do garoto ou não, mas um estrondo de algo quebrando e o grito que ele soltou acabaram decidindo por ela. Lisa abriu o tranco da porta e saiu em disparate rumo ao som, que vinha de um cômodo no andar de baixo: a cozinha. Desceu as escadas rapidamente e se deparou com o único cenário que jamais teria imaginado.

Ela esperou encontrar o homem com uma faca no pescoço do garoto, ameaçando tirar sua vida se a família não arcasse com um valor justo em troca. Ela esperou encontrar Gabriel morto e estatelado no chão com uma poça de sangue saindo de um buraco de bala em sua cabeça. Esperou qualquer coisa que pudesse lhe fazer gritar mais uma vez e implorar pela própria vida, mas a única coisa que encontrou foi Gabriel, de fraldas, parado ao redor de uma panela virada pra baixo. O chão da cozinha encontrava-se marrom e gorduroso por causa do feijão que o garoto derrubara de cima do fogão, certamente quando puxou o cabo de plástico colorido da panela. Gabriel exibia um olhar culpado pra avó, mas esboçava um sorrisinho traiçoeiro. Ele disse: “Desculpa, vó. Eu bati na sua porta, mas você não atendeu. Eu queria o feijão.”

Lisa desabou a chorar. Teria ajoelhado no piso da cozinha se não fosse a sujeira que agora tomava conta do lugar. Quis gritar com Gabriel, esmurrá-lo até vermelhar a bunda e colocá-lo de castigo trancado em algum quarto, mas só o que conseguiu fazer foi dar graças aos céus por estar tudo bem. Olhou para a porta da frente e viu que estava intacta e ainda trancada, como deixara minutos antes. Olhou a persiana fechada da janela que dava para a rua e foi até ela verificar se o homem ainda estava lá. Mas não estava. O grande arbusto da casa dos Correa só escondia uma parte da caixa de correios, não uma silhueta estranha. Lisa respirou fundo e notou que já não sentia mais a presença demoníaca, ao menos não naquele instante. Então ela enxugou as lágrimas e respirou fundo, com a certeza de que sua vida ainda era uma merda, mas sabendo que por hora estava salva.

Voltou para a cozinha e pôs-se a limpar o feijão. Gabriel ria.

 

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